sábado, 26 de dezembro de 2015

Para um caderninho de Natal

* Por Urariano Mota


Crônica escrita há 11 anos. 


Uma adolescente a quem desoriento em aulas de Português vem me pedir algumas palavras sobre o Natal. Diante do meu engasgo, ela me diz que qualquer coisa serve, e sinto que ela pensa em acrescentar “qualquer coisa, até mesmo o que o senhor me diga”. E para não lhe dizer que procure pessoa mais qualificada, começo:

“O Natal é uma festa comercial, minha filha. É a data magna da hipocrisia universal. Nesse dia as pessoas dizem se amar. No Natal, as autoridades, os que têm boa vida divulgam e querem fazer crer que as diferenças acabaram entre os homens. Os ricos de bens materiais ficam subitamente espirituais, e com o estômago repleto arrotam que a melhor salvação é a da alma. (E penso, enquanto assim lhe falo, na Pequena Vendedora de Fósforos, de Andersen, mas minhas palavras não conseguem a graça dessa claridão.) No entanto, você sabe, os ricos continuam humanos em suas mansões, e os pobres continuam porcos em seus casebres, no mesmo dia 25. No outro dia, você sabe... (E penso nos Estranhos Frutos de Billie Holiday, mas minhas palavras não se iluminam com essa luz de negros enforcados em árvores no Sul dos Estados Unidos .) O Natal, minha filha ...”.

E paro. O seu rosto reflete o desagrado de minhas palavras. Quem ensina a adolescentes aprende a ler nos seus olhos, nas suas bocas, o agrado ou a decepção do que pensa ensinar. Agora, enquanto escrevo, percebo que é uma vitória da sociedade de classes a crença em boas famílias, em belos pais, em generosos sentimentos, essa coisa resistente até mesmo em pessoas que só conheceram da vida a humilhação, a patada e os coices. A jovem com quem falo é uma adolescente pobre, filha natural, com somente esse adjetivo óbvio, natural, da natureza, nada mais. Como um fruto da partenogênese. À primeira vista, ela possuiria todas as condições para entender o que lhe digo. Mas o seu rosto me faz parar. Sinto o grande mal que lhe causo em procurar ser verdadeiro numa data em que todos pedem e esperam e anseiam que sejamos todos absolutamente falsos. Talvez, reconsidero agora ao escrever, o seu desagrado se dê porque sou apenas convencional, comum, de um esquerdismo vulgar, quando queria ser verdadeiro como o leite que chupei em minha própria mãe. E convencional por convencional melhor seria que eu escrevesse no seu caderninho uma frase do gênero “sejamos durante todo o ano como neste dezembro 25”. Quanta besteira, quanta excrescência, quanto excremento!


Por isso eu lhe digo agora esta verdade mais dura, sem bandeira e sem panfleto, com a coragem que só possuímos à distância:

Eu também já acreditei em Natal, minha filha. Antes de saber que os homens se matam e se barbarizam e são feras todos os dias do ano. Antes, bem antes de receber um pontapé nas costas, na bunda, de um marujo norte-americano. Sabe o que é ser expulso do paraíso, do navio, do lugar onde se comia com fartura, sabe o que é ser empurrado e não se voltar para não se ver naquele estado de ser jogado fora como um pária, ou como um pus, um catarro? Sabe o que é baixar a cabeça, morto de vergonha, com medo e com pavor que outros vissem a sua pobre pessoa ser tratada assim aos berros por um marujo ensandecido? Sabe o que é chorar e descobrir sozinho pela primeira vez que Deus não existe, porque se existisse não permitiria que jovens cheios de amor e sentimento e poesia fossem chutados como bons filhos da puta que nunca deixaram de ser? Acredite, acreditei no Natal bem antes dessa boa lição quando eu tinha a sua idade.

Antes disso, minha filha, o Natal para mim foi um par de sapatos, belos, novos e marrons, e belíssimos e lindos e tão perfeitos e artísticos e caros como uma criança pode sonhar. A minha filha sabe o que é ter uns sapatos que vestem a gente até a alma? Pois, eu os ganhei. Quase, melhor dizendo. Porque num dia 25, logo cedinho, eles estavam embaixo da minha cama. Não que eu não tivesse sapatos, sim, eu possuía uns muito velhos, gastos, enrugados, quase sem sola, de cadarços desfiados. Pois, eu quase ganhei esses absolutamente novos. Ganhei-os, digamos, até o meio-dia dos meus 7 anos de idade. E para que todos também partilhassem da minha alegria, eu os exibi ao sol da minha janela, da casinha onde eu morava. Eu pensava que a felicidade se compartilhava. Eu pensava que a felicidade era um bem impossível de ser vivida por um menino só. (E até hoje, às vezes, este velho menino teima em pensar assim. Mas só às vezes.) Pensava. Roubaram-me o par de sapatos, minha filha, num dia 25 de dezembro. E como o meu pai era um homem de lições muito fortes e pedagógicas, deu-me uma surra pela infelicidade que tive em não ter o par de sapatos. Daí talvez me veio esse ar de homem que despreza a felicidade. Esta é a razão, mocinha: ficou em mim a sensação de que a felicidade é um bem que me vão roubar. Daí que dela desconfio, quando dela não tomo segura distância. Não ter felicidade é uma forma de sofrer somente um pouquinho.

A minha filha já vê que eu não lhe poderia dizer tais verdades para um dia de tamanha fraternidade. Então anote, por favor, no seu caderninho esta meia-verdade:

O Natal é a esperança de que algum dia em algum lugar um menino vá receber um par de sapatos marrons e vesti-los até a alma. Antes que alcance a sua idade, mocinha, antes que receba alguns sapatos pelas costas.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.



Um comentário:

  1. Entendo a sua amargura, Urariano. Não acredito que sinta esse rancor tão forte até hoje. Porque se assim fosse, seria impossível viver. O seu Deus morreu de um jeito muito catastrófico. O meu teve a mesma sorte, mas foi diante de um momento mais sublime: a ruptura com o primeiro amor.

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