segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Olhos de tudo ver


* Por Daniel Santos


Aquele ali é papai. Está trabalhando – parece. De vez em quando, assina alguma coisa com o seu jeito elegante de pegar na caneta. Umas garotas na escola dizem que eu já faço igualzinho. Será mesmo?

Vim aqui chamar para o lanche da tarde, mas não tive coragem, porque ... Ah, ele está com uma cara! Igual assim, só uma vez, quando beijou minha testa antes de dormir e percebeu que ardia em febre.

Foi aí que vi papai crescer muito, muito acima de mim com olhos de tudo ver. Debaixo da toca da sua testa, duas chispas de fúria se acenderam e entendi: ele se revoltava contra o que me abatia.

De um salto, acendeu as luzes, acordou a família, chamou o médico e só descansou manhãzinha, quando a sezão cedeu. Além do remédio, foi a certeza de ter alguém vigilante por mim que me curou. Foi sim!

Agora, aquela mesma cara. Assina papéis que decidem o mundo, enquanto gente aflita se apressa pelas ruas lá fora. Mas tenham calma. Papai está na vigília. E – acho – não vai nem tomar o lanche da tarde.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



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