quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Ando exausta de tanta solidão!


* Por Mara Narciso


A generalização é tão burra quanto a unanimidade. Hoje consideradas carrancudas, até recentemente as pessoas eram fotografadas sérias. Agora, nesta época de festas de fim de ano, em que a felicidade demonstrada nas centenas de fotos de famílias em êxtase, com vinte ou mais pessoas esfuziantes de alegria, contestar sua autenticidade é ficar fora dos parâmetros e ser apedrejado. Quem posta tais fotos no Facebook acredita que o público crê na veracidade da cena.

Felicidade por decreto. Isso tem tempo. No Dia do Fico, em 1822, disse Dom Pedro I: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Diga ao povo que fico”. Estava, pois, decretado que é preciso ser feliz, ainda que seja num sorriso tipo exportação.

Tradicionalmente, o Natal é a festa da família, ocasião em que se deve apaziguar os ânimos, virar a página, zerar os acontecimentos, praticar o perdão, largar as diferenças, abandonar a mesquinharia, deixar pra lá as desavenças, especialmente as financeiras. Brigas por causa de dinheiro? Na minha família, não. Irmãos que não podem se sentar à mesma mesa? Só se for na sua casa. Calúnia, injúria e difamação? Apenas na página policial do jornalismo marrom, nos programas escandalosos da TV, ou nos vídeos acéfalos da internet. Sobrinhos que não se toleram ou infidelidade conjugal no grupo? Nem em sonho!

Irmãos que não brigam por causa de dinheiro, só numa hipótese: não há nada a ser dividido. Nem mesmo o funeral dos pais. A presença dos velhos mantém frágil equilíbrio e a turma se suporta numa falsa harmonia. Morreu um dos dois, já começa a guerra. Poderá haver um cunhado (ainda bem que cunhado não é parente), para não aceitar o acordo. Já dizia Paulinho da Viola: “dinheiro na mão é vendaval [...] cada um trata de si/ irmão desconhece irmão”.

A intenção é boa. Todo mundo quer impregnar a si e aos outros, borrifando amor. E geralmente impregna, pois, pelo menos por um tempo, boas vibrações circulam. Um ou outro, fingindo contestar, diz coisas amargas, raivosas, contra a simbologia do Natal. Cede a um ou outro detalhe, mas o que quer mesmo é derrubar mitos. Não consegue.

Poucos lamentam se a alegria é fugaz e dura o tempo da foto ou do efeito alcoólico. E qual é a desta conversa estraga prazeres? Contestar a imagem radiante, quando se está empanturrado de felicidade, é coisa de recalcado. A obrigatoriedade de ser feliz é tão forte, que quem não consegue seguir o script está fora do contexto, um despeitado, que deveria visitar um psicanalista.

Diante de pessoas unidas, lindas e amadas, que se ocupam do bem estar umas das outras, não há espaço para tristeza, insatisfação, doença ou solidão “Todo mundo tá feliz/ Tá feliz/ Todo mundo quer dançar/Quer dançar/ Todo mundo pede bis/ todo mundo pede bis/ Quando para de tocar”, Xuxa cantava em “Tindolelê”. A família, aquele lugar onde é fácil ser feliz, deixa os infelizes deslocados, sentindo-se fora da propaganda de margarina. Poucos suportam gente lamurienta, mal-amada, não-realizada. Os tempos atuais determinam, e quem não atende ao efeito manada tem de se esconder.

A família feliz e linda está à beira da mesa farta, é hora da oração, afinal Jesus nasceu. Poucos se lembram dos desassistidos, enfermos e deprimidos. Há muitos que estão sós em suas casas e nas ruas. Culpa deles, que não souberam fazer as escolhas certas. Quem tocar no assunto é um frustrado demagogo.

As festas de fim de ano com suas diversas interpretações têm público cativo para cada tendência. A maioria quer festejar, comer, beber e presentear. Quem não se adequar a isso e mostrar insatisfação com os exageros precisa se enquadrar ou se calar. E que a carapuça não se assente em nenhuma cabeça feliz. Deixe estar. Por outro lado, não há vergonha em se sentir exausto de tanta solidão. Ainda que em meio a uma multidão sorridente.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



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