sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Transformar em sofrimento pessoal o que acontece no mundo


* Por Leonardo Boff


Atualmente há uma fecunda discussão filosófica, também entre nós com Muniz Sodré (As estratégias sensíveis, 2006)  e F. J. Duarte (O sentido dos sentidos, 2004) no sentido de resgatar a razão sensível como enriquecimento imprescindível da razão intelectual. Esta diligência é necessária, porque é através dela que nos comprometemos afetiva e efetivamente com a salvaguarda da vida no planeta e com a humanização das relações sociais. Curiosamente o Papa Francisco, neste ponto, em sua encíclica sobre o cuidado da Casa Comum (2015)  nos trouxe valorosa contribuição.    

Ele analisa com espírito científico e crítico  “o que está acontecendo com a nossa Casa” (nn.17-61). Logo adverte que, numa perspectiva da ecologia integral que é o tema fundamental de seu texto, estas categorias são insuficientes (n.11). Temos que abrir-nos “à admiração e ao encanto…. e falar a linguagem da fraternidade e da beleza na nossa relação para com o mundo” (n.11). Portanto, não nos podemos restringir à ecologia ambiental, pois ela atende apenas à relação do ser humano com a natureza, esquecendo que ele é parte dela. Essa relação unilateral constitui o vício do antropocentrismo, criticado em seu texto (nn.115-121).

Ocorre que o ser humano possui dimensões sociais, políticas, culturais e espirituais sobre as quais há parca preocupação e insuficiente reflexão, o que dificulta encontrar uma solução consistente à grave crise que assola a Casa Comum.

Considerando a amplitude destas dimensões, devemos  ir além de uma análise meramente técnico-científica. Devemos, sim, utilizar a pesquisa científica imprescindível, mas importa “deixar-nos tocar por ela em profundidade e dar uma base de concretude ao percurso ético e espiritual daí derivado” (n.15). Mais ainda “devemos  transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo” (n.19).

O Papa Francisco tem clara consciência de que por detrás das estatísticas há um mar de sofrimento humano e muitas feridas no corpo  da Mãe Terra. Como somos parte da natureza e tudo está inter-relacionado (tema sempre recorrente na encíclica, nn. 70, 91,117, 120, 138,139 etc) e nós nunca  estamos fora  da “trama das relações” (n.240) que a todos envolve, participamos das dores da crise ecológica. Chega a advertir que “as previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia… o estilo de vida atual, por ser insustentável, só pode desembocar em catástrofes, como aliás estão acontecendo periodicamente em várias regiões” (n.161).

Mas o Papa não se deixa intimidar por esse cenário. Dá um voto de confiança no ser humano, em sua criatividade e em sua capacidade de regenerar-se e de regenerar a Terra (n. 205) e muito mais, confia no Deus que, segundo as palavras da tradição judeu-cristã, “ é o soberano amante da vida” (Sab 11, 24 e 26: nn. 77, 89). Ele não permitirá que nos afundemos  totalmente (n.163). Ainda faremos “uma conversão ecológica” (n. 217) e introduziremos “a cultura do cuidado que permeará toda a sociedade” (n.231).

Disso nascerá um novo estilo de vida (alternativa repetida 35 vezes na encíclica), fundado na cooperação, na solidariedade, na simplicidade voluntária e na sobriedade compartida que implicará um novo modo de produzir e de consumir e, por fim, nos dará “a consciência amorosa de não estarmos separados das outras criaturas mas que formamos com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal” (n.220).

Como se depreende, aqui não fala mais somente a inteligência intelectual, técnico-científica, mas a inteligência emocional e cordial como o tenho detalhado nos meus dois livros Saber Cuidar  e O Cuidado Necessário (Vozes). O Papa em suas palavras de afeto e de carinho para com todos, especialmente para com os pobres e os mais vulneráveis dá claro exemplo do exercício deste tipo  de inteligência tão urgente e necessária para superarmos a profunda crise  que recobre todos os âmbitos da vida.

Em razão desta inteligência emocional, pede que devemos “ouvir tanto o grito da Terra como o grito dos pobres” (49). As agressões sistemáticas, feitas nos últimos dois séculos, “provocam os gemidos da irmã Terra que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo” (n.53). Por isso importa “cuidar da criação… e tratar com desvelo os outros seres vivos” (n. 211), pois todos possuem um valor intrínseco, independente do uso humano (n.69) e, a seu modo, até as ervas silvestres (n.12), louvam o Criador (n.33). Chega dizer que devemos “alimentar uma paixão pelo cuidado” por tudo o que existe e vive.

Enfatiza o fato de que “nós com todos os seres do universo, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (n. 89).

Somente quem tem desenvolvido em alto grau a inteligência sensível ou cordial poderia escrever: ”tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como  irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma de suas criaturas e que nos une também, com terna afeição ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio e à Mãe Terra” (n. 92).

Tais sentimentos e atitudes hoje constituem uma demanda geral, para afastar as tragédias ecológico-sociais que já se anunciam no horizonte de nosso tempo.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.

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