quinta-feira, 29 de outubro de 2015



* Por Marcelo Sguassábia


Uma piscada mais lenta que o normal, um micro-cochilo em meio à reta que teimava em inacabar e dou por mim com o carro quase ralando o guard-rail. Quanto em segundos durou o descuido é tão incerto quanto o que me fez acordar a tempo.

Estou indo para o abrigo tão antigo e permanente como o firmamento e o sentimento de dever cumprido após a missa. Lá ainda se trocam cartas e há mais que um ou outro de chapéu pelas ladeiras. A preguiça tem função e é exercida ritualmente, pede-se a benção e sente-se a mão de pai e de mãe com força de viga e de lei. É âncora de respeito, o que pai falou não se questiona. Da mesma forma ninguém desdiga o que mãe diz para ser feito, ainda que lhe falte uma beira de razão pelo avançado da idade.

Acelero para o oco do tempo atrasado, onde o asfalto dessa pista ainda não passou perto, meca dos centros de mesa de crochê, cucos e bolinhos de chuva, onde as mágoas da véspera saem na água do banho sem maiores dramas. Não levo nada além desta carcaça em descuido a pedir arrego, reza de proteção e cuidados redobrados. Lá ainda lembram de mim como o caçula de meu pai, no corpo novo que fui, e não serei eu a roubar-lhes a ilusão. Se não me reconhecerem, que vejam em mim um sujeito outro e distinto da imagem, agora sépia, de alguém com o cabelo em desalinho e o olhar tolo de quem não tinha noção do que teria de enfrentar.

Lá é um sempre que cismou de sempre ser, os incomodados que se mudassem, corressem para outras freguesias, despencassem dos penhascos e ganhassem rugas por esse mundo além-montanha, de onde nada de proveito haveriam de trazer. Quando muito esses zumbis, dos quais provavelmente eu sou o chefe, retornam trazendo o desespero dos anos idos longe dali e muito mal aproveitados, pois foram anos em lugares outros espelhando nesses lugares outros o casulo de nascença, a cidade das paredes que descascam mas permanecem paredes em seu vigor vitalício.

Limite de município. Falta pouco para o triunfal retorno dos vencidos e mutilados de guerra, aqueles que voltam sem medalha de bravura no pescoço. De soslaio os olhos passam pelo retrovisor, e por um instante os vejo sem papadas e livres da catarata que embaça a vista e o entendimento.

No lugar que não me aguarda com faixas de boas-vindas, vilarejo das coisas que são como se acostumaram, haverá decerto um povo arraigado em seu sossego a rotular-me forasteiro ou desertor, que ficará indiferente ao choro que não segurarei quando de novo embaixo da velha árvore.

Das últimas vezes, nesse trecho, não haviam lombadas no caminho, a bem dizer quase nem caminho havia, nem tantos carros, nem placas que falam de loções cremosas e hambúrgueres. Os velhos de então se foram e o neo-velho que chega encontrará, passado este sinal vermelho, o enigma das gerações que se sucederam sem que pudesse acompanhar. É o preço a ser pago, assistir ao sumiço das quitandas e alfaiates ao mesmo tempo em que se sente a perda de massa dos músculos e o fim como perspectiva próxima.

Engasga o carro. Veja se isso é hora de acabar a gasolina.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. Uma retrospectiva com sabor amargoso, de quem é neo-velho, foi vencido e volta mutilado. Ainda que não tenha doce, é uma volta com algo de engraçado, mesmo com uma graça dramática. Todos que já passaram de certa idade se vê nesta sua volta.

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