sábado, 24 de outubro de 2015

Raça e povo


* Por Roquete Pinto


O episódio de Canudos, ao contrário do que Euclides pretendia, não foi o começo do esmagamento de uma raça fraca; foi o desdobrar solene das energias adormidas naqueles atrasados sul-americanos, cuja aparência nipônica não devemos, todavia, acentuar pela injeção de mais sangue amarelo, ao gosto de alguns capitalistas.

Existe nessa questão da hierarquia das raças uma fábula incluída, uma moralidade implícita. Enquanto se tratava de deprimir apenas os povos negros e amarelos, procurando provar, de todo modo, a sua inaptidão para o progresso, sua incapacidade anatômica e psicofisiológica para a civilização, pouca gente protestava, entre os cientistas europeus e americanos.

A doutrina antropológica da desigualdade servia até muito bem ao ideal dos ingleses, que desejavam dominar o Transwaal; dos franceses, que se empenhavam em conquistar Madagascar e a Algéria; dos italianos, que cobiçavam a Eritréia. Porém, um belo dia, um diplomata francês, de Gobienau - de quem os diplomatas diziam que era grande antropologista, e os antropologistas afirmavam que era excelente diplomata - homem de boa pena, começou a escrever, com calor, em prol de uma tese ainda mais apurada:

Mesmo na raça branca há tipos destinados à servidão, e outros predestinados ao domínio; os dominadores seriam os celebérrimos arianos, gente escolhida que, nunca, ninguém conseguiu encontrar biologicamente caracterizada. Porém, em França mesmo, completou-se a falha da doutrina; e, desde 1869, Lapouge proclamava que o tipo dominador tem caracteres anatômicos definidos: é alto, tem crânio longo, cabelos louros e olhos claros.

Mas, a teoria começou a infiltrar a política externa da Prússia, e foi citada para justificar o esmagamento impiedoso da França, em 1870, e para preparar a trituração da Bélgica em 1914...; então, aterrorizados com a construção que tinham ajudado a erguer, os cientistas entusiastas caíram em si...

E hoje...

O pobre negro, inferior, o imprestável... foi um dos mais fortes baluartes da linha, atrás da qual se asilaram os verdadeiros monumentos da civilização. O negro, que a toda hora nos era lançado em rosto, como atestado escandaloso da nossa inferioridade étnica, desmentiu no solo da Europa aqueles tristes vaticínios; e até os médicos franceses consideraram-no o soldado de melhor sangue, o que resiste mais ao calor, ao frio, aos ferimentos e às doenças; é dos mais valentes, dos mais sóbrios, dos mais disciplinados...

Estamos de acordo...

A Europa encheu-se de mulatinhos e devorou feijão preto; pressente-se que vai chegando a hora da reabilitação dos povos feios.

E quando vier o fim da luta, o negro será chamado irmão pelo altivo indo-europeu.

Dois preconceitos hão de ruir com os destroços daquele cataclisma humano: o preconceito da raça e o preconceito da força. Porque o conflito demonstrou que a violência já não basta para resolver as questões que se levantam entre os homens e forneceu, aos caluniados da ciência, a oportunidade que até então lhes tinha faltado.

***

Eis aí a grande ilusão de Euclides: considerou inferior, gente que só era atrasada; incapazes, homens que só eram ignorantes.

Que o mestiço do centro do Brasil representa um tipo muito mais definido, e portanto, mais adiantado que o do litoral, ninguém pode contestar. O imenso litoral deste país é uma contínua ameaça à sua nacionalização; o trabalho demorado de antropogênese, que se vai no sertão afeiçoando, é, na costa, continuamente perturbado por elementos acessórios; aí, Euclides acertou.

Porém, muito maior mal do que essa injeção de sangue estranho, como corpo perturbador da reação, é a influência deletéria do cosmopolita, ganancioso e desmoralizador, que turva o meio social, nos centros diretores da nação, para dominar mais depressa e enriquecer mais sossegado.

A mestiçagem deu o jagunço; o jagunço não é mameluco, filho de índio e branco. Euclides estudou-o na Bahia; pois Bahia e Minas são os dois Estados da União em que mais se espalhou o africano. Ele esforça-se por mostrar que o isolamento, condicionado pelo meio físico, preservou a evolução do cruzamento que forneceu aquela variante admirável. É incontestável que a segregação fortalece as espécies, garantindo-lhes a diferenciação dos tipos originários; é uma realidade a lei de Wagner.

Todavia, elementos não faltam no livro dos Sertões para provar que aqueles homens que "antes de tudo eram fortes", tinham fartas gotas de sangue negro. É só reler a descrição do poviléu de Canudos:

"Todas as idades, todos os tipos, todas as cores... Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros de caboclas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras, de brancas legítimas, embaralhavam-se sem uma fita, sem um grupo, sem uma flor, toucado ou coifa mais pobre."

Quanto aos homens, aqueles indomáveis espartanos, que não morreram para a história, porque o gênio de Euclides os amparou, na ponta da sua pena, brilhante como um relâmpago, a mistura é a mesma: Antônio Beatinho, o discípulo mais chegado ao apóstolo delirante, era mulato; Pedrão, que com 30 homens guardava, contra um exército, as vertentes da Cana Brava, era cafuzo; Estêvão, guarda da estrada do Cambaio, era negro; e tinha o corpo tatuado a bala e a faca.

Tais foram os máximos representantes daquela gente mestiça, cujas características Euclides traçou em páginas que afortunadamente o mesmo leitor pode encontrar mais adiante, para atenuar o que ele diz dos mestiços nos primeiros capítulos. É lícito, então, concluir: o sertanejo resultou de complexa mestiçagem; seu tipo sublimou-se numa completa adaptação às condições ecológicas: ele é um forte; representa um verdadeiro tipo de raça brasileira.

Eis aí, nessas conclusões fatais da grande obra de Euclides, a justificativa da sua glorificação científica.

Como aqueles grandes descobridores, que mal imaginam as aplicações futuras dos seus achados, ele procurou ouvir, demasiadamente, o que alguns cientistas segredavam sobre tipos que mal conheciam; preocupou-se demais com os quadros hórridos que teve de pintar, e mal percebeu que uma nação que possui filhos daquele molde, que ele chama de "titãs" à falta de melhor, não pode deixar de conquistar o seu lugar no mundo, caminhando para o domínio integral da sua terra.

Tenho por seguro que o contraste que Euclides apontava, entre o jagunço e o gaúcho, ao invés de ser um mal, para a nossa força de nação é uma das nossas melhores garantias. Ligados pela mesma língua, ambos, o paciente e o afoito, o alto e o baixo, o alegre e o triste, diferentes no tipo morfológico e nos costumes, têm qualidades que se completam, adornando uma alma comum.

O gaúcho tem a iniciativa, o ímpeto fogoso, o ardor vibrante; o jagunço tem firmeza e resistência; calcula friamente, é tenaz. A patologia elucida muitas vezes as ligações normais dos fenômenos, que, só quando exagerados pelo estado mórbido, se podem apreender; e o episódio de Canudos em miniatura, repete-se no Contestado.1

Tenho em mãos documentos altamente interessantes, para o estudo da psicologia dos "fanáticos" de Tamanduá: orações fetichistas, armas de madeira votivas, objetos do culto religioso paranóide. A dos campônios do Brasil, fora, longe das zonas em que a nossa desídia tem consentido na diluição dos nossos traços mais individuais, é uma só.

"Não teremos unidade de raça", exclama Euclides. E que o povo a tem?

Todos os europeus, segundo hoje se acredita, nasceram do cruzamento de uma raça de crânio curto (raça alpina), com tipos negróides, de crânio longo. E nem por isso existe unidade de raça naquele continente. Quantos tipos na Alémanha, que é o mais coeso grupamento humano que a história contemporânea registra?

É que as noções de raça e de povo baralham-se muito freqüentemente, mesmo na linguagem dos cientistas. E assim foi na de Euclides.

As raças distinguem-se por caracteres somáticos: são unidades biológicas. Os povos, ao contrário, caracterizam-se por elementos sociológicos. E, por isso, um mesmo povo pode ser formado de raças mui diversas sem maior perigo para o seu futuro, desde que os fundamentos de sua sociedade (língua, forma de governo, família, história, etc.) forem mantidos no ambiente comum.

Aqui ainda, a terra do Brasil, com a sua vastidão, suas belezas e seus antagonismos, oferece perigos ao seu povo.

Os traços realmente originais, na contribuição naturalística da obra de Euclides da Cunha, acham-se no capítulo terceiro dos Sertões. São apenas trinta e cinco páginas, onde, em síntese suprema, ali está, esboçada, a etnografia sertaneja, naquele estilo cujo molde o crime partiu, há oito anos; naquela linguagem que faz lembrar a majestade das florestas, quando segredam ao caminheiro, na aparente confusão dos sons profundos, os mistérios de toda a Terra.

E, no Palácio da Boa Vista, onde o meu desejo vê, plasmada, a alma da minha pátria, a "Sala Euclides da Cunha" documenta, nos seus mostruários, a vida dos sertanejos.

***

É um escritor pungente; aflige, emociona, e, por isso mesmo, desperta, como nenhum outro, o ideal nacionalista.

Os Sertões não é um volume de literatura: é um livro de ciência e de fé. E são essas as duas molas que faltam para o desencadear da nossa cultura popular: crer e aprender!

Se eu pudesse levar a cada povoação deste continente brasileiro uma palavra sequer; se pudesse ser ouvido pelo povo da minha terra... eu lhe diria: "aprende a ler, não para ser letrado, mas para conseguir a educação social indispensável aos filhos de um país moderno; fala aos teus, sempre, da casa em que nasceste, das suas palmeiras, dos seus pinheiros ou dos seus ervais; narra à tua família os farrapos da história comum que conheceres, porque a História do Brasil deve ser a oração dos nossos lares; trabalha e fiscaliza, com severidade e justiça, a aplicação do produto do teu esforço; considera a vida difícil da maioria dos povos, e bendiz a tua. E, quando o desânimo te infiltrar o coração, procura Euclides; ele te mostrará, com verdade e fulgor, o mundo de que és dono. E tu, meu irmão, como o Fausto da lenda medieval, erguerás de novo o grito da esperança:

Espírito sublime! Permitiste que eu lesse no seio profundo da minha terra como no peito de um amigo: revelaste as forças secretas da minha própria existência..."

Em Santa Catarina.

(Seixos rolados. Estudos brasileiros, 1927.)


* Médico legista, professor, antropólogo, etnólogo e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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