sábado, 17 de outubro de 2015

Pirolito


* Por Alberto Faria


A João Luso

Nos Cantos populares do Brasil, de Sílvio Romero, encontra-se a quadrilha:

Pirolito que bate, que bate,
Pirolito que já bateu:
Quem gosta de mim é ela,
Quem gosta dela sou eu.

O coletor patrício não a acompanhou de explicação particular, enxertando-a na série dos "Versos gerais", cuja rubrica é: "Origens - do português e do mestiço; transformações pelo mestiço". Só o fato de acharmo-la também nas coletâneas de Portugal, sem diferença mínima, certifica-nos da procedência exata.

Mas em nossa ex-metrópole corre outra, de maior ancianidade, da qual cumpre considerá-la mera variante. E é essa que nos fornece a chave do sentido afetuoso, uma imagem comparativa tomada ao reino vegetal.

Ouçam-na, antes da revelação:

Loreiro que bate, bate
Loreiro que já bateu.
Loreiro que bate, bate
Num amor que já foi meu.

O povo assimilou o gesto das mulheres doidivanas e presumidas, em vendo os apaixonados, aos movimentos dos ramos sobremodo flexíveis, apenas tangidos pela aragem. E a memória de D. Francisco Manuel de Mello, seiscentista ilustre, reclama a prioridade desta interpretação perfeita, visto como se lê na Carta de guia de casados, cap. VII ("Das várias castas de mulheres"):

"Mulheres há leves e gloriosas, prezadas do seu parecer: loureiras cuido que lhes chamavam os nosso antigos, por significar que a qualquer bafejo do vento se moviam."(1)

Às compartícipes do namoro de antanho, menos artístico que o flirt moderno, no furtivo dos olhares eletrizantes, pegou a antonomásia de loureiras, em vez de piroliteiras, porque só mais tarde o pirolito, na forma alterada do pirlito, substituiu na cantiga o loureiro, loreiro da pronúncia velha.

Isto ressalta da simples aproximação dos dois espécimens, alhures feita antes por outrem.

Em São Paulo, acrescenta-se ao primeiro traslado um outro, cuja essência é quase igual à do segundo, corroborando destarte a identificação: arquivou-o D. Alexina de Magalhães Pinto, à pág. 143 de Nosso brinquedos:

Pirolito que bate, bate,
Pirolito que já bateu:
A menina que eu amava,
Coitadinha! já morreu.

No vizinho Estado de Minas, consoante registro da distinta professora, loc. cit., o pirolito cambiou-se em fiorito. O fenômeno caracteriza a apropriação, como já em 1873 notava Celso de Magalhães: "O povo, no trabalho da transplantação, transforma primeiro aquilo que lhe impressiona mais os sentidos, e a natureza que o cerca é a primeira a fornecer símiles para essa elaboração." Assim se explica a mudança de juncal para capinzal, no ressabido conto da Madrasta, etc.

A despeito da graciosa lição centenária, que referimos há pouco ainda, as moças bonitas podem conservar-se à janela, mesmo quando crianças, batendo palminhas, imitantes a entrechoques de ramagens, entoem na rua o Pirolito que bate, bate... Ao repetirem a brejeirice dos adultos, elas fá-lo-ão inconscientemente, sem suspeitar que alguém porventura aguarda o simbólico transvôo de algum passarinho verde!

(1) É desacertada, à plena evidência, a ementa de Filinto Elísio, Obras completas, ed. de Bobée, Paris, 1818, t. V, pág. 97:

"Loureiras chama D. Francisco Manuel (no Guia de casados) as mulheres que os franceses chamam femmes galantes. Creio que a razão de lhes dar esse título é tirada do costume dos taverneiros, que põem louro à porta, como sinal; a que na Lógica, que eu aprendi, chamaram ex-instituta."

(Aérides, 1918.)


* Jornalista, professor, crítico, folclorista e historiador. Membro da Academia Brasileira de Letras.

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