domingo, 25 de outubro de 2015

Personagens de Proust

* Por Álvaro Lins

Deste modo as personagens de Proust se acham destituídas de lógica, de uma lógica digamos exterior ou formal. Isto representa uma excelência na ficção; não é um defeito. Personagem lógica é personagem medíocre, prisioneira de estreitos limites, com as suas intenções já calculadas e os seus atos já previstos pelo próprio leitor. Porque, no mundo das figuras de ficção, a lógica de sentimentos e episódios significa: não fazer nada de extraordinário, não praticar nenhum ato desconcertante e surpreendente. Exige-se às vezes essa uniformidade, está claro, em nome das nossas visões ordinárias, convencionais e cotidianas, das visões que os homens comuns transmitem com os seus movimentos e ações dentro da vida. A arte, porém, não é a mesma coisa que a vida; o seu plano é o da superverdade e o da super-realidade. Além disso, as personagens de romance não são seres comuns, desde que têm uma história para ser contada ou apresentada. As de Dostoievski, por exemplo, são desmedidamente ilógicas segundo os padrões da nossa realidade. Um dos seus heróis protesta contra a tirania matemática do dois e dois são quatro. Protesta e prefere que sejam cinco. Por que será menos "lógico" do que aqueles que afirmam que são quatro? Será suficiente que ele conserve uma "lógica interna", a lógica da sua própria natureza. E essa "lógica interna" é também o sistema de peso e medida das personagens proustianas.

Não era do gosto de Marcel Proust a criação de figuras uniformes e invariáveis, de caracteres inteiriços: maciçamente bons ou maus, simpáticos ou antipáticos, superiores ou reles. Numa personagem encantadora como Saint Loup, por exemplo, ressalta de repente um aspecto vulgar e mesquinho, como naquele momento em que confessa ter transmitido a Bloch uma opinião confidencial do Narrador. Depois de haver sempre tratado o pobre diabo Saniette da maneira mais odiosa e indigna, e no momento mesmo em que vinha de colaborar numa canalhice, M. Verdurin pratica um ato surpreendente de bondade e generosidade para com aquele seu papa-jantares, dando-lhe uma pensão fixa de dez mil francos ao sabê-lo de todo arruinado. E a duplicidade de sentimentos - "les choses, en effet, sont pour le moins doubles", conclui o Narrador - gera conseqüências não menos imprevistas. Mlle. Vinteuil, que praticava o amor anormal com a sua amiga Léa, e que para excitar-se sadicamente nesse amor gomorriano profanava o retrato do seu pai morto, será depois quem mais contribuirá para a glória dele, promovendo a edição da principal obra músical de Vinteuil, reconstituída com a generosa colaboração daquela mesma amiga. E por intermédio dos amores igualmente anormais de Charlus e de Morel é que o septeto será executado e consagrado num salão de Paris, perante a aristocracia. Assim, os vícios de criaturas danadas de Sodoma e Gomorra geravam a pura e irreprochável glória do gênio artístico de Vinteuil.

Não sendo lógicas, as suas personagens também não são "tipos" representativos de situações gerais. São indivíduos, não são representações de um vício ou de uma virtude. O problema do tipo nas personagens de romance esteve presente em toda a ficção do século XIX, com exceção de um Stendhal, que ultrapassa como psicólogo os limites de sua época. Não havia maior ambição para um romancista do que criar uma personagem-símbolo. Uma personagem que simbolizasse a ambição ou a avareza, o político ou o burocrata, um sentimento ou uma profissão. Parece-nos que o problema se achava ligado à tradição dos "retratos de caracteres" dos moralistas do século XVII, entre os quais La Bruyère é expoente e modelo. Ilustrativa também, neste sentido, é a obra Virtues and vices, de Joseph Haal, aparecida em 1608. Mas os "tipos", segundo vícios e virtudes, são numericamente poucos e limitados, como as clássicas situações dramáticas. Tendem, além disso, para a imobilização, como blocos: a virtude X determina a personagem de tipo X; a virtude Y gera a personagem de tipo Y. Um processo de tal espécie esgota-se logo nas mãos de alguns grandes romancistas, e os seus sucessores, para se salvarem da contingência de repeti-las indefinidamente, têm de procurar outra solução. Procurou-a Marcel Proust, e encontrou-a na passagem da unidade linear da personagem-tipo para a complexa variedade da personagem-indivíduo.

Vejamos a este respeito a diferença entre Balzac e Proust, sabendo-se que Proust representa no romance do século XX o mesmo papel de Balzac no romance do século XIX. As personagens de Balzac são mais representativas e inteiriças exteriormente; as de Proust, mais misteriosas e complexas interiormente. Na principal galeria balzaquiana, Grandet é o avaro ao mesmo tempo que a avareza; Rastignac é o ambicioso, simbolizando também a ambição. Na galeria proustiana, porém, Charlus não é o homossexual, nem a homossexualidade, mas um homossexual; Swan não é o ciumento, nem o ciúme, mas um ciumento. Balzac e Proust fizeram psicologia aplicada, mas o que diferia era o tratamento psicológico das personagens.

Dir-se-á, e é verdade, que, sendo assim, jamais as personagens de Proust terão a vida independente de um Grandet, ou de um M. Homais, ou mesmo do nosso Conselheiro Acácio - isto é, no sentido da popularidade irracional, da existência autônoma na linguagem corrente de leitores e não leitores, como seres despregados de seus criadores e mais conhecidos do que eles próprios. Pois o "tipo" é mais simples para ser fixado, entra na memória como representação construída do que já se acha lá de modo fragmentário e informe, torna-se mais fácil de ser "decorado", como a poesia com metro e rima regulares. Mas as personagens-indivíduos alcançam compensação numa glória de outra natureza.

Ante Grandet ou Acácio, por exemplo, o leitor dirá:

Como é natural este tipo! Conheço muita gente que é exatamente assim.

E terá o prazer de identificar as personagens através do que já sentia confusamente nas relações com os seus semelhantes na vida real.

Ante Albertine ou Charlus, porém, a exclamação do leitor será diferente:

Como é estranha esta figura! Nunca vi um ser humano de tal natureza, com tantos mistérios e contradições.

E terá o prazer da descoberta ao acompanhar o romancista nessa exploração em profundidade dentro do território humano.

(Da técnica do romance em Marcel Proust, 1951.)


* Advogado, jornalista, professor e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário