quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Simulação consciente


* Por Mara Narciso


Lenço longo amarrado na cabeça, feito um turbante com pontas largadas de lado, sobre os ombros, cobrindo todo o couro cabeludo. Pele clara e pálida, marcas roxas de machucados no rosto e braços, olhar inquieto, aparência frágil, dentro de um vestido jeans na altura dos joelhos, sem mangas e com botões na frente. Maria Aidê conta estar tendo desmaios há quatro meses, e feito exames. Os dentes estão se soltando e as gengivas sangrando.  Esteve algumas vezes no pronto socorro. Não está bem e os médicos não sabem qual é o seu problema.

Ainda não a mandaram procurar um psiquiatra, conta sorrindo, mas está fazendo psicoterapia há dois meses. Sente-se fraca, com pernas fadigadas e dor de cabeça. Cai com facilidade, e já se machucou feio. Não chega a desmaiar. Apenas, a qualquer hora, com estômago cheio ou não, simplesmente cai no chão. Perguntada, não explicita com clareza a sequência dos sintomas. Disseram que fica ainda mais pálida, com suor frio. Pensaram em glicose baixa, mas não foi confirmado. Dia desses, quando foi beber uma xícara de café, perdeu o equilíbrio e bateu o lado esquerdo da testa na quina da mesa. O estrago está lá, visível, assim como a ostentação de outras marcas pelo corpo.

Não aparenta estar atormentada, mas tem ar de desamparo. Precocemente envelhecida para 50 anos, não tem filho, mas pensou que teria um. Segundo afirmou, a menstruação suspendeu por seis meses e a barriga começou a crescer. Sentia enjôos, tonteira, desequilibrava-se, e foi ao ginecologista. Ainda que o ventre estivesse proeminente, aparentando um útero grávido, o ultrassom não mostrou feto. Mesmo depois do desmentido, a menstruação não veio e nem os enjôos cessaram.

O que mais a incomoda é a cefaleia, que não cessa. É intensa e acomete todo o crânio. Vem com alterações visuais e náuseas. Toma analgésico irregularmente, mesmo nas crises. Fala termos técnicos e não acredita no que dizem os médicos. Parece que seu destino é sofrer, mas ir a consultórios a distrai. As pessoas não a entendem. Querem que volte ao trabalho, mas não consegue. Está de atestado médico há três meses. Cansou-se das imensas responsabilidades na fábrica. Trabalhava na produção e não conseguiu descansar nas férias. Parece que voltou pior. Sente-se sufocada pelo trabalho. Lembra-se da fábrica e faz vômito. Quando ouve a voz do chefe, ainda que por telefone, o peito se aperta em angústia.

Há três meses os cabelos começaram a cair às tochas. As melenas longas e lisas estavam se soltando em grandes bolos. As peladas se instalaram, e foi preciso passar a máquina zero. Disseram tratar-se de alopecia areata. Não procurou dermatologista e nem está fazendo tratamento. Cobriu a cabeça com o lenço. Os conhecidos a interpelam, perguntando se está em tratamento de câncer. Ela desconversa, fala que não sabe, segura a ponta do lenço, olha ao longe, e parece se nutrir da curiosidade alheia, que contraditoriamente a liberta.

Seus exames são normais, desde o eletroencefalograma, ressonância nuclear magnética do crânio e exames de sangue, inclusive marcadores tumorais, dentro das referências. Os médicos continuam procurando por um câncer. A cabeça pelada sugere doença grave, intensifica a imagem de fragilidade, tão freneticamente buscada. Solicitada a descobrir a cabeça, retira o lenço, e mostra o couro cabeludo normal, com cabelos de dois meses nascendo em toda a sua extensão, de forma uniforme e exatamente simétrica. Não há cabelo mais fino ou desigual nem áreas com menor pilificação.

Quando o mistério se instala, e as queixas não encontram confirmações externas, o caminho é buscar na mente as causas do transtorno. Hipocondria? Somatização? Simulação? Para não cometer injustiças e nem atrasar o tratamento, é preciso ficar atento. Havendo discrepância entre o que é queixado e o que é encontrado, pensar em simulação consciente. Existem simuladores verdadeiros e aqueles erroneamente diagnosticados como tal. No presente caso parece haver um desejo de se manter no papel de doente. Um psiquiatra poderá dizer do que se trata, e tratá-la, para que não mais precise da piedade alheia como alimento.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



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