terça-feira, 22 de setembro de 2015

Romance sem nada de convencional


Dora Bruder” – livro lançado, originalmente, na França, em 1997 e relançado, em 2014, no Brasil, pela Editora Rocco – é uma das publicações mais fascinantes, peculiares e originais (do próprio Patrick Modiano, seu autor e de outro escritor qualquer) que tive a oportunidade de ler nos últimos tempos. Até agora, confesso, nem mesmo sei como caracterizá-lo. É romance? É novela? É ensaio? É memorialismo? Não sei!!! E isso importa? Tudo bem, o livro é classificado pelos críticos como “romance”. Consideremo-lo, pois, como tal.

Todavia, o livro mescla, simultaneamente, a uma suposta história fictícia (e nem tenho certeza que seja mesmo ficção), com memórias pessoais do autor, com dados autobiográficos, com reflexões filosóficas etc.etc.etc, Depois de sua leitura (e de algumas outras publicações de Modiano), entendo o que motivou a Academia Sueca e conferir-lhe o Prêmio Nobel de Literatura de 2014. Eu faria a mesma escolha. A polêmica e cobiçadíssima premiação literária anual está, sem dúvida, em ótimas mãos. Afinal, o premiado exorbita nos quesitos originalidade e criatividade.

A narrativa praticamente começa quando um escritor (que Modiano insinua se tratar dele próprio), dá de cara, e casualmente (isso em 1988), nas páginas de um exemplar muito velho do “Paris-Soir” (de dezembro de 1941, época em que a França estava sob ocupação nazista) com um anúncio sobre o desaparecimento de uma adolescente, colocado certamente pelos seus pais. O texto do jornal dizia: “Procura-se uma jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55cm, rosto oval, olhos marrom acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho,sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris”. Tentando imaginar o que poderia ter acontecido com a menina, o escritor concluiu que ele e a desaparecida tinham coisas em comum. Partilharam, por ocasião do seu desaparecimento, os mesmos espaços urbanos, locais da cidade em comum, suas ruas e praças, além de vivências. E isso sem nunca terem se encontrado. É possível, até, que tenham se cruzado, casualmente, sem que se reconhecessem e nem se apresentassem um ao outro em nenhuma ocasião.

Como se fora um detetive, empenhado em uma investigação, Modiano sai à procura da parisiense Dora Bruder, tendo como fio da meada apenas os escassos dados do anúncio do “Paris-Soir”. Ou seja, que se tratava da filha de Ernest Bruder e de Cécile Burdej. E que nascera em 25 de fevereiro de 1926. Seu ponto de partida foi esse e os inconclusivos dados que encontrou nas repartições oficiais, como o registro de nascimento da moça, relatórios policiais e o que conseguiu saber nas ruas de Paris dos que conheceram a adolescente. Descobriu que Dora era judia, o que representava quase uma sentença de morte naquela França ocupada de 1941, em que milhares de judeus eram enviados para os campos de extermínio da Alemanha sem que ninguém se importasse. Ao longo da sua busca, o escritor  “revive” a própria adolescência, as memórias dos seus pais, as dificuldades e temores que eles tiveram e, assim, traça paralelos entre as vidas das duas famílias: a dos Bruders e a dos Modianos.

Na tentativa de refazer os passos de Dora Bruder e saber se estava viva ou morta e, caso vivesse, onde estava, o autor, nas entrelinhas, como se não quisesse nada, chama a atenção para o sinistro passado da França sob a ocupação nazista. Não se conforma que ele tenha sido como que varrido para debaixo do tapete. Rebela-se, intimamente, com o fato de que se tenha apagado por completo da memória a existência de tantas pessoas comuns, mas que viveram, amaram, trabalharam e tiveram sonhos nessa mesma Paris, como se nunca tivessem nem mesmo existido. Em sua ingente pesquisa, o escritor consegue muito pouco: um endereço, uma certidão de nascimento, algumas fotografias, alguns documentos e vagas menções em relatórios e informações sobre os pais da moça. Nada mais do que isso. Passados pouco mais de 40 anos do desaparecimento de Dora Bruder, Paris já não era mais a mesma cidade, posto que sua geografia não tivesse mudado o bastante. Apesar disso... o cenário, em muitos casos, era muito diferente. Em certo trecho do livro Modiano desabafa: “Foi tudo aniquilado, para que se construísse uma espécie de cidade suíça, da qual não se pudesse colocar em dúvida sua neutralidade”.

“São pessoas que não deixam vestígios atrás de si. Praticamente anônimas. Não podemos separá-las de certas ruas de Paris, de certas paisagens de subúrbio, onde descobri, por acaso, que moraram. O que sabemos delas se resume, quase sempre, a um endereço apenas. E essa precisão topográfica contrasta com o que vamos ignorar para sempre de suas vidas – esse branco, esse bloco de desconhecimento e silêncio”, escreve. Diz, ainda: “Ao escrever este livro, lanço apelos, como sinais de farol, mas infelizmente custa-me a acreditar que possam vir iluminar a noite”. O crítico e o leitor podem até não gostar do estilo de Patrick Modiano (que, da minha parte, aprecio sem a menor restrição). Mas ninguém pode afirmar que se trate de um escritor comum, medíocre e convencional. Para mim, que não o conhecia, até ele ser premiado com o Nobel, é uma das mais gratas descobertas da Literatura dos últimos trinta ou quarenta anos.

Boa leitura.


O Editor.

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