quinta-feira, 24 de setembro de 2015

E se viéssemos a perder todas nossas memórias?

A amnésia é um drama terrível na vida de qualquer pessoa. É pior ainda se o afetado por ela for intelectual, que dependa da memória para sua atividade e que, subitamente, se veja privado dela. Aliás, é uma tragédia para qualquer um. Você já pensou como seria se, subitamente, viesse a esquecer tudo o que é, viveu e fez? Se não se lembrasse de quem amou, dos lugares que conheceu, dos livros que leu, das músicas que ouviu e vai por aí afora, como seria? E não só isso, o que já é sumamente trágico. Como se sentiria se esquecesse, até mesmo, quem você é, qual o seu nome, sua profissão, seu estado civil, seus parentes e amigos e assim por diante? Essa, porém, é uma situação a que todos estamos sujeitos, embora (felizmente) seja um tanto rara. Não conheço ninguém que fosse vítima de amnésia, ou que ainda ostente essa condição. Você conhece, caro leitor? Provavelmente não.

Por que trago esse assunto à baila? Porque a amnésia é o tema central do romance de Patrick Modiano, intitulado “Uma rua em Roma”, publicado pela Editora Rocco nos anos 80, no Brasil (sem nenhuma repercussão) e republicado agora, depois que o autor conquistou o Prêmio Nobel de Literatura de 2014 e que, acredito, vá repercutir. Deveria! Trata-se de um livro que, pelo menos aparentemente, difere do padrão do restante da obra desse escritor. Por exemplo, é mais extenso do que suas publicações anteriores e posteriores. A edição brasileira tem 224 páginas, quando os demais livros de Modiano mal chegam a 150. Todavia, seu fulcro temático, ou seja, o tempo e a memória, é mantido. No caso, com a perda dela e com a ingente busca do personagem central na tentativa da sua recuperação.

Aparentemente, o ganhador do Nobel de Literatura de 2014 abandonou outro dos seus temas recorrentes: a ocupação da França, pelos nazistas, no período de 1940 a 1944, na Segunda Guerra Mundial. Mas... abandonou? Não! Deixou, apenas, implícito. Embora em momento algum cite explicitamente essa incômoda realidade para os franceses, o leitor atento percebe que o período em que o enredo se desenrola é exatamente esse. Só não entendi, até agora, o título dado ao livro, em português.

Não lembro de nenhuma passagem em que as ruas de Roma sejam palco da narrativa. Aliás, o título original, “Rue des boutiques obscures”, sequer sugere algo que lembre a capital italiana. Talvez a tradução mais exata (e adequada) devesse ser “Na rua das lojas escuras” ou algo que o valha. Mas o título, que para mim é inadequado, não diminui a importância desse romance. Tanto ele é importante, que valeu a Modiano um dos prêmios de maior expressão e prestígio da França, o “Goncourt de 1978”. Ou seja, os franceses praticamente anteciparam, em 36 anos, o reconhecimento (agora mundial) do talento desse escritor, que viria com a conquista do Nobel de Literatura de 2014.

Em “Uma rua de Roma”, o autor nos convida a acompanhar o empenho do narrador-protagonista, Guy Roland, há oito anos sofrendo de amnésia, na busca por sua verdadeira identidade. Como detetive, que de fato era, o personagem procura descobrir seu passado, a história que havia construído até a perda da memória, os rastros que deixou por onde passou etc. etc. etc. Vale-se, para isso, de breves relatórios e de conversas fortuitas que teve. Guy – que parte de uma patética constatação, ao concluir: “não sou nada” (e não era mesmo por não saber nem quem era – segue sua intuição para ir atrás de pessoas que poderiam ajudá-lo a refazer seus próprios passos. Modiano aproveita para trazer à baila questões filosóficas, que atormentam as pessoas desde quando o homem tomou consciência de que podia pensar, como “quem sou?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”.

Modiano não se limita a descrever a saga de Guy Roland, em busca de saber quem é. Penetra em sua mente, vasculha seus pensamentos e, sutilmente, nos induz a refletir sobre nossa própria realidade, nossas memórias, nossas lembranças a que nem sempre damos o devido valor. Faz o mesmo com tantos outros personagens que alguma vez mantiveram contato com o desmemoriado. Escreve, a certa altura, reproduzindo o pensamento de determinado protagonista: “Acho que se pode ouvir ainda, nas entradas dos prédios, o eco dos passos daqueles que habitualmente as atravessavam e que desapareceram. Alguma coisa continua a vibrar após sua passagem, ondas cada vez mais fracas, mas que se podem captar, se estamos atentos. No fundo, eu talvez nunca tivesse sido esse Pedro McEvoy, eu não era nada, mas ondas me atravessavam, ora longínquas, ora mais fortes, e todos esses ecos espalhados que flutuam no ar se cristalizavam e era eu”. De todos os livros de Modiano que li, este é o que me causou maior impressão e que me fez refletir muito mais. É uma soberba obra-prima!!!!

Boa leitura.

O Editor.

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