sábado, 19 de setembro de 2015

Banho de cuia

* Por Clóvis Campêlo


Seu Afonso era um dos biscateiros mais conceituados do Pina naquela época. Espécie de braço direito do meu pai, era ele quem fazia tudo lá em casa, desde o esgotamento da fossa, até a pintura da casa, serviços de encanador ou eletricista ou mesmo a construção de algum cômodo extra.

Quando o meu pai comprou os dois toneis de duzentos litros, cada um, para suprir a falta de água crônica no bairro, ele foi convocado para cimentá-los e o fez com competência. No Pina dos anos 60, a água só chegava nas torneiras à noite. Durante o dia, só na torneira do quintal, entre os dois coqueiros vermelhos que o meu pai plantara e que alimentava sistematicamente com salitre do chile, é que chegava um filete incerto e frágil. Banho de chuveiro, nem pensar. O que prevalecia era o banho de cuia ou, quando chovia, o banho na bica que ficava na quina do telhado, ao lado do pé de goiaba branca da China.

Não era à toa que dona Rosa havia construído no quintal da sua casa, no famoso Beco da Tapa, um banheiro coletivo para os banhos públicos e pelos quais cobrava preços módicos.

Do mesmo modo, na Rua Estudante Jeremias Bastos, onde eu morava, havia o chafariz público de dona Quitéria, e outro no Encanta Moça, onde os vendedores de água abasteciam as carroças puxadas por cavalos para vender o precioso líquido nas ruas e comunidades próximas.

Essa situação só se modificaria nos anos 70, com a construção pelo DNOCS do açude do Rio Tapacurá, afluente do Rio Capibaribe, inaugurado em 1973, na cidade de São Lourenço da Mata, e com uma capacidade máxima de 94,2 milhões de metros cúbicos. O açude acabaria com os problemas de fornecimento de água na zona sul do Recife, mas, nessa altura, já havíamos nos mudado do Pina.

Isso tudo me veio à mente agora com a informação divulgada pela grande imprensa de que o fornecimento de água no Grande Recife estará comprometido e racionado até o dia 10 de dezembro para priorizar a continuidade das obras da Cidade da Copa. Uma sacanagem imposta pela FIFA e pelo grande capital internacional que vem investindo nesse acontecimento. O futebol, hoje, faz parte da rentável (para eles) indústria do entretenimento, justificando o abuso e o sacrifício da população metropolitana.

Mesmo com o Recife sendo apenas uma sub-sede, com a realização de um pequeno número de jogos, somos obrigados a suportar isso. Já não basta terem alterado  leis em vigor para permitir aos gringos pagarem em dólares pela cachaça consumida.

Toda a infra-estrutura exigida pelos organizadores e patrocinadores da Copa do Mundo de 2014 não visam o bem da população, e sim, garantir a possibilidade de lucro para as empresas investidoras. Para mim, o cúmulo da patifaria.

Enquanto isso, sou obrigado a voltar aos banhos de cuia dos meus tempos do Pina.

* Poeta, jornalista e radialista, blogs:



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