sábado, 19 de setembro de 2015

500 ou 515 anos de corrupção 1


* Por Mouzar Benedito


Em 2005, quando estourou o escândalo do “Mensalão”, a revista Caminhos da Terra me pediu uma matéria grande sobre a corrupção no Brasil, desde suas origens. Pesquisei bastante e fiz. Acredito que, pela situação em que o Brasil vive no momento, vale publicá-la novamente, neste blog. Não é para “justificar” o que acontece agora. É injustificável. Talvez sirva para explicar um pouco.

A matéria foi publicada com o título “500 anos de corrupção”. Na verdade, eram 505, pois tudo começou no ano de 1500. Em 2015, completam-se então 515 anos.

Obviamente, ela não inclui o que aconteceu depois de 2005. A corrupção não deixou de acontecer, nos níveis federal, estadual e municipal, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (este, por enquanto intocável! Faz o que quer), nas empresas, na polícia, nas mais variadas instituições e também na vida cotidiana de uma grande parte da população. Pequenos corruptos fazem pose de indignados, mas se tivessem oportunidade…

A corrupção “pós-mensalão” está ainda fresca na cabeça de quem quer ter memória. E vai continuar existindo, não há como duvidar.  Mas nos dias de hoje há uma novidade, que espero valer daqui pra frente para políticos de todos os partidos, empresários, banqueiros, empreiteiros, seja quem for: a história, citada na matéria, de que no Brasil cadeia é só para os “três P – pobres, pretos e putas”, está um pouco abalada.

Aí vai o texto, lembrando que para publicar na revista ele foi editado e – isso é normal – um pouco modificado pelos editores. Alguns trechos caíram, acredito que por falta de espaço. Aqui, vai do jeito que fiz.

“Foi pra isso que fizemos a revolução?”

Esta frase foi pronunciada em tom de desencanto por muitos militares, quando começaram a pipocar casos de corrupção envolvendo gente da cúpula do governo, nos anos 1970 e 80. Os decepcionados eram aqueles que acreditaram que em 1964 houve mesmo uma revolução e que ela veio não apenas para espantar o “fantasma do comunismo”, mas também para acabar com a corrupção.

Sentimento semelhante vem agora de gente que entrou na política justamente combatendo tanto a ditadura quanto a corrupção, militantes que se dedicaram por mais de vinte anos ao PT, até conseguir colocar um ex-operário na presidência da República.

Ninguém duvida que a corrupção não é novidade, pois muitos (talvez a maioria) dos ocupantes de altos cargos políticos – nos governos federal, estaduais e municipais – saem desses cargos bem mais ricos do que entraram. Isso é tão comum que pareceu algo inusitado a volta de Olívio Dutra ao emprego de bancário, quando terminou seu mandato de prefeito de Porto Alegre, em 1987. Algo realmente incomum num país em que boa parte dos eleitores aceita e até louva político que “rouba mas faz”, em que historicamente a corrupção faz parte do cotidiano público e privado, onde sonegação de impostos por empresas é quase obrigação, e onde até a igreja chegou a contrabandear usando santos ocos cheios de ouro e pedras preciosas.

A novidade do que acontece agora é que no foco da crise está o partido que elegeu como bandeira principal o combate à corrupção, que era aceito até pelos opositores como inatacável neste sentido.

Os danos da crise atual são muito grandes, pois em grande parcela dos decepcionados cria-se a sensação de que o Brasil não tem jeito, que todos os políticos são iguais – o que é festejado pelos corruptos de outros partidos – e que não vale a pena se envolver com política. Ou pior: que o Brasil precisaria de um regime duro, até mesmo uma ditadura, coisa que já foi experimentada e não deu certo, pois em vez de acabar com a corrupção impediu-se apenas que ela fosse noticiada, sufocando a imprensa.

Só no Brasil?

Uma das conclusões falsas que até parte da mídia abraça é que a corrupção é um fenômeno típico brasileiro. Não é. Ela existe desde muito antes do descobrimento do Brasil. Sempre esteve presente em todos os grupos e em todas as nações, não é um fenômeno exclusivo de uma sociedade ou de um momento de seu desenvolvimento, mas as práticas são diferentes em cada país.

Uma prova de que ela não é exclusiva do Brasil é um ranking divulgado pela ONG Transparência Internacional, em outubro de 2004, que traz uma espécie de ranking da corrupção de 146 países pesquisados. A lista começa pelos países menos corruptos e caminha progressivamente para os mais corruptos, e o Brasil aparece em 59º lugar. Nos primeiros lugares estão países com alto grau de desenvolvimento humano e distribuição de renda mais equilibrada. A Finlândia encabeça a lista, como país menos corrupto. Nos últimos lugares estão países subdesenvolvidos e com péssima distribuição de renda, como Haiti e Bangladesh, os mais corruptos.

Fica claro também que o subdesenvolvimento é um fator de aumento da corrupção. Países subdesenvolvidos, além do tradicional abuso de poder e outros quesitos, têm fatores institucionais que favorecem a corrupção, como o excesso de regulamentações. A profusão de leis dá oportunidade para o surgimento de pessoas “espertas” que se tornam especialistas em decifrá-las e intermediar processos e ações. São pessoas que, na linguagem popular, conhecem o caminho das pedras, sabem quem decide e como manipular as decisões. Esse emaranhado de leis, muito apreciado por certos políticos, traz um embutido um velho ditado popular: criar dificuldades para vender facilidades.

Início viciado

Muita gente acredita que um fator determinante na criação de uma mentalidade que favoreceria a corrupção no Brasil é o emprego de degredados na colonização. Eram pessoas que cometeram crimes em Portugal e foram condenados a cumprir suas penas aqui, forma utilizada para povoar com portugueses o Brasil e outras colônias portuguesas. De fato, só com Tomé de Souza, primeiro governador geral do Brasil, vieram quatrocentos degredados.

Mas, embora Duarte Coelho, dono da capitania de Pernambuco, dissesse que eles eram o veneno da terra, que com eles só a forca resolvia, muitos historiadores discordam da periculosidade dos degredados, já que, dado o interesse em mandar muita gente para cá, qualquer pequeno delito era motivo para o degredo. Cerca de duzentos delitos eram punidos com o degredo. Até adúlteros e alcoviteiros eram degredados. O título de um livro do historiador Geraldo Pieroni já mostra os degredados não eram “bandidos”: Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados do Brasil-Colônia. Nele, o autor afirma que o “nascimento do nosso país” se deveu a esses degredados por delitos de ordem religiosa ou moral.

Eduardo Bueno, jornalista e pesquisador da nossa História, autor de vários livros sobre o descobrimento e a colonização do Brasil, insistindo em ressalvar que é preciso tomar cuidado com generalizações, afirma que o problema “não está no degredado e sim nos que tinham o poder de enviar degredados para o Brasil”. Segundo afirma, a corrupção do Brasil começou mesmo antes do descobrimento, já que nos impérios português e espanhol – chamados “impérios papeleiros” por causa da burocracia que criava um amontoado de leis que geravam uma gigantesca estrutura paralela, à margem do poder central – havia um núcleo de corrupção muito grande, de desvio de verbas, negociatas e dribles na justiça.  Nessa burocracia e nesse tipo de “império papeleiro”, para Bueno, está o germe do sistema corrupto que persistiu e persiste.

Hoje é comum dizer que no Brasil cadeia é só para os “três Pês” (pobres, pretos e putas), referindo-se à impunidade dos ricos, e isso é uma herança também dessa tradição ibérica em que aos cavaleiros – ou seja os ricos que tinham cavalos, contrapondo-se aos peões, que andavam a pé – ficavam por lei isentos das chamadas “penas vis”, não podiam ser espancados, amarrados em pelourinhos ou condenados à morte. Isso, fora a venalidade da justiça e o tráfico de influências.

A carta de Pero Vaz de Caminha, que saiu do Brasil em 1º de maio de 1500, depois de dar a boa nova da descoberta, ou “achamento”, do Brasil, trazia em seu final um exemplo dessa tradição. Nela, Caminha aproveita a ocasião para pedir a volta a Portugal de seu genro degredado em São Tomé, na África, por ter roubado uma igreja e espancado o padre.

E já na fundação da nossa primeira capital, há um exemplo claro de corrupção, com superfaturameno na construção de Salvador, por empreiteiras, entre 1549 e 1556.

E os holandeses? Apesar do príncipe Maurício de Nassau ser um homem culto e ter trazido cientistas e artistas para Pernambuco, com ele vieram também, como colonizadores, pessoas que não ficavam atrás dos degredados portugueses. Aliás, teve origem na Holanda a história de que não existe pecado ao sul do equador. Aqui valia tudo.

Tempos imperiais

Tradição pré-descobrimento, a corrupção continuou aqui com a chegada família real portuguesa, inculta e grossa, em 1808. Dom João VI é tratado pelos historiadores como sujo e balofo, grosseiro no trato com as pessoas. No tempo em que esteve no Brasil, de 1808 a 1821, a corrupção se alastrou consideravelmente.

Dom Pedro I, seu substituto, era mais estadista, mas, além da queda pela vida mundana, tinha na conta de seus amigos pessoas muito pouco recomendáveis, que assumiram posições importantes no Império. Entre eles o famoso Chalaça, apelido do português Francisco Gomes da Silva, considerado o homem mais poderoso do período. Companheiro de farras de Dom Pedro, ele nomeava e demitia quem queria.

Em seguida veio Dom Pedro II, um homem culto, mecenas, poliglota, apreciador das artes e da ciência… mas sem nenhuma aptidão para governar. Ficava enfastiado com as coisas do Estado. Com isso, fazia vistas grossas para os desmandos e a corrupção, inclusive a corrupção eleitoral. Por isso era chamado de Pedro Banana. Seu reinado era repleto de festas, que aconteciam como se o país estivesse às mil maravilhas.

Depois de 1884, seu governo foi ficando insustentável, por causa da chamada “Questão Militar”, que teve como estopim a descoberta de corrupção num destacamento do Exército no Piauí. Só se falava em corrupção e crise, mas mesmo assim ele ficava alheio a tudo. No dia 9 de novembro de 1889, ofereceu uma grande festa para os oficiais de um navio chileno, com três mil convites disputados pela elite do Rio. Champagne, camarão e muito luxo, como se não houvesse crise. Esta festa, conhecida como baile da Ilha Fiscal, foi considerada o canto do cisne do Império, que caiu menos de uma semana depois, no dia 15.

E veio a República

Com a República não mudou muito, a corrupção continuou, tanto que as mudanças radicais de governos sempre tiveram entre as causas motivadoras – pelo menos nos discursos – o combate à corrupção. Isso ocorreu, por exemplo, em 1930 e 1964. Sem contar que desde o governo Jânio Quadros, que foi eleito tendo como símbolo uma vassoura, que seria usada para “varrer” os corruptos do governo anterior, quase todos que ocuparam o poder pela via eleitoral falavam em combate à corrupção do seu antecessor. Fernando Collor de Mello combateria a corrupção de José Sarney, Fernando Henrique Cardoso combateria corrupções anteriores e Lula viria acabar com a corrupção do período FHC.

Nem tudo, porém, foi inútil. Um caso exemplar foi o impeachment de Fernando Collor, em 1992. Mas a imprensa, que colaborou bastante para esclarecer alguns casos, vitimada pelo denuncismo, cometeu pecados indesculpáveis, como foi o caso do deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), que presidiu a Câmara dos Deputados na época da cassação de Collor e depois foi cassado também, por terem sido encontrados em sua conta um milhão de dólares, segundo a revista Veja. Só que a matéria tinha um erro: muitos anos depois foi descoberto que no dinheiro de sua conta o repórter pôs três zeros a mais. Na realidade, ele tinha mil dólares.

Mas se a imprensa comete erros, pior é quando ela não existe. Não há informação. Até o início do século XIX não tivemos nenhum jornal. O primeiro jornal brasileiro nem surgiu aqui, foi em Londres, já que a imprensa era proibida no Brasil. O Correio Braziliense, criado por Hipólito da Costa, começou a circular em 1º de junho de 1808 e tinha entre seus propósitos denunciar a corrupção.

O primeiro jornal impresso no Brasil veio pouco depois disso, em setembro de 1808. Era A Gazeta do Rio de Janeiro, que já nasceu sob censura. Dois anos depois uma carta régia autorizava o funcionamento de uma tipografia em Salvador, mas com censura do governador e do arcebispo!

A censura foi praticada até com muita violência, também, durante o Estado Novo (1937-45) e a ditadura iniciada em 1964 e este é um motivo por que a corrupção parecia menor.

Já próximo ao final da ditadura, em 1981, havia muitas denúncias de corrupção e chegou a ser criada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias como o chamado “escândalo Lutfalla”, de tráfico de influência de Paulo Maluf para a concessão de altos empréstimos do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, atual BNDES) a empresas da família Lutfalla, à qual pertence Sylvia Maluf, esposa do ex-governador, em estado pré-falimentar. Mas o partido do governo – o PDS – era majoritário e a CPI foi abortada. Em 2001, outra CPI também deveria apurar a corrupção, com 16 pontos a serem investigados, entre os quais o tráfico de influência, contribuições eleitorais irregulares, fraudes na concessão de incentivos fiscais e caixa 2 nas campanhas eleitorais, mas o presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu convencer vinte parlamentares a retirarem suas assinaturas do pedido de CPI e ela não foi instalada.

Há também momentos de cumplicidade da mídia com o poder, como no processo de privatização, quando, por exemplo, a Companhia Vale do Rio Doce foi avaliada inicialmente em 120 bilhões de dólares e acabou vendida por 3,2 milhões e a mídia apoiou ou calou.

Algumas histórias de corrupção no Brasil

O governador e seu engenho

Em 1597, o governador geral do Brasil era Dom Francisco de Sousa, apelidado Francisco das Manhas. E pelo jeito, era mesmo manhoso: ele foi acusado de desviar dinheiro público para o seu engenho. Mas foi mantido no cargo.

Nassau e a classe dominante

Ordenança de Maurício de Nassau a seus sucessores, durante a ocupação holandesa: “Convém que VV. SS. procurem angariar e manter, por meio de favores e de dinheiro, alguns portugueses particularmente dispostos e dedicados para com VV. SS., dos quais possam vir a saber em segredo os preparativos do inimigo (…). Esses portugueses devem ser os mais importantes e honrados da terra, e lhes será recomendado que, exteriormente, se mostrem como se fossem dos mais desafetos aos holandeses”.

Traidor premiado

Os cofres públicos já foram também usados para premiar delatores. Um exemplo é Joaquim Silvério do Reis, que denunciou a Inconfidência Mineira. Ele era conhecido como mau pagador em Ouro Preto, estava cheio de dívidas, e depois da delação ficou tão malvisto que temia ser assassinado. O governo resolveu o problema dele, que fugiu dos credores e dos que o odiavam pela traição, indo para uma fazenda que recebeu de graça, no Piauí, presente governamental. E para não correr risco de notícias dele chegarem aos desafetos, seu sobrenome foi mudado para Montenegro.

(CONTINUA)




* Jornalista

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