terça-feira, 25 de agosto de 2015

Um copo de cólera e as ondas

 

* Por Eduardo Oliveira Freire



Deve-se sempre ter cuidado ao analisar uma obra literária focada no ponto de vista sociológico. A literatura não é o espelho da realidade, mas impressões e idéias de certo artista, o qual é influenciado por um grupo social, época e valores. Tentarei não fazer grandes generalizações. Essa crônica será um exercício experimental.

A novela escrita por Raduan Nassar possui um enredo denso e com diversos conflitos nas entrelinhas. Lembro-me de que a primeira vez que ouvi falar sobre o autor, estava na casa de uma tia. Fomos à locadora, deparei-me com o filme baseado no livro de Raduan Nassar: Roteiro. Por Aluizio Abranches e Flávio R. Tambelllini, 1995”. Fiquei admirado com as cenas de sexo, pois eram descritas com intensa poesia. Anos mais tarde, quando fui ler o livro, revi as imagens do filme. Elas foram fiéis à narrativa em primeira pessoa da história, tornando o ambiente mais intimista.

Do conflito intimista de um casal, subliminarmente vários conflitos foram expostos: Feminismo x Machismo, Socialismo x Capitalismo e questões sociais que o Brasil estava passando na época, como a ditadura e a falta de liberdade. Com a urbanização crescente no país e no mundo, a história contextualiza algumas questões e transformações da época. A novela foi publicada em 1978. Nessa época havia a ditadura militar no Brasil e em alguns países da América Latina.
 
As brigas começam quando as formigas destroem a plantação do protagonista e que despertou nele um sentimento de cólera. Talvez eu esteja imaginando coisas que não existem, contudo, relacionei as formigas com os camponeses famintos que invadem a propriedade privada do senhor da terra.

A mulher que foi ao seu encontro representava o urbano: trabalhava fora, era independente financeiramente e com idéias modernas. Quando ela viu a explosão de raiva do outro, começou a ironizar, falando o que pensava sobre ele.

O texto me fez pensar de como os problemas e as dialéticas da sociedade são digeridas nas relações íntimas do cotidiano. E que cada gesto que se faça há diversos pontos de vistas nas entrelinhas.

Segundo Clifford Geertz, no livro A Interpretação das Culturas (1989): “ O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado...” ( pág: 15).

Muitas vezes, nós tomamos atitudes que parecem ser instintivas, mas são socialmente construídas: rir, piscar o olho etc. Em relação à questão dos gêneros masculino e feminino, estética, relações sociais e culturais são conceitos construídos a partir da interpretação de “certa” sociedade.

A história parte do micro para o macro e mostra como esse último influencia o primeiro. Todavia, não almejo dizer que o livro reproduza a realidade como um todo da sociedade brasileira e mundial. Ele serve como paradigma para que nós, individualmente, mesmo tendo as nossas singularidades, nos norteemos por valores e conceitos culturais e que nos antecederam.

Na novela “Um copo de Cólera” existem algumas semelhanças em relação ao romance de Virginia Woolf, “As Ondas”. Na história, as seis personagens não interagem.  Cada uma conta sua história e suas impressões separadamente, como se fosse um monólogo. A mensagem que a história passa é a de que, quando o indivíduo cresce, perde a imaginação e os sonhos da infância.  Apequena-se e somente almeja consumir bens materiais e ter posição social.
 
Virginia Woolf critica o pensamento e as atitudes da burguesia, sua superficialidade nos sentimentos e pensamentos. Usa o mesmo processo da curta história de Raduan Nassar. Parte do cotidiano particular para o mundo geral.
 
“A vida nos apartará. Mas formamos certos laços. Acabaram nossos anos de infância. Mas formamos certos elos. Acima de tudo, herdamos tradições. Estas lajes são usadas há seiscentos humanos anos. Nestas paredes são inscritos os nomes de guerreiros, estadistas, alguns poetas infelizes (o meu estará entre eles). Abençoadas todas as tradições, todas as salvaguardas e limitações! Sou extremamente grato a vós, homens de trajes negros, e a vós, mortos, pelo vosso exemplo, pela vossa proteção; apesar de tudo, porém, o problema permanece. As contradições ainda não foram conciliadas. Flores movem suas cabeças contra a janela. Vejo pássaros selvagens, e instintos mais selvagens do que os mais selvagens pássaros erguem-se do meu selvagem coração. Meus olhos são selvagens; meus lábios, firmemente comprimidos. O pássaro voa; a flor dança; mas eu ouço sempre o embate monótono das ondas; e a besta acorrentada pateia na praia. Pateia sem parar”.

Esse trecho espelha a essência do livro: os personagens aprisionados pelo cotidiano monótono (as ondas), não podendo voar e se libertar da vida sem graça em que vivem.

Na filosofia existencialista de Sartre, o homem não possui uma essência definida, porém se constrói em sua existência. “O homem é o ser cuja existência precede a essência”. As duas histórias mostram que os personagens vão se construindo ao longo do tempo. As respectivas personalidades não são formadas pela razão em si, mas por sentimentos.

GEERTZ, Clifforf. a Interpretaçâo das Culturas. LTC, 1989
WOOLF, Virginia. As ondas. Nova Fronteira, 2004
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997

* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando pós-graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

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