sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Síntese artística


* Por Martins Junior


Na Bactriana antiga, - essa vetusta Pérsia
Onde Deus era o Sol e onde era crime a inércia
Havia (a História o diz) um povo de valentes
Que o tórax da Terra enchia de sementes
E que enchia de preito o velho Zoroastro.
Como os ventos do mar fazem vergar um mastro,
As vertigens da Luz, invariavelmente,
Sacudiam o ser da iraniana gente.
Diz a História, também, que ali tal era crença
Nos prodígios de Agni, na sua força imensa,
Que o persa, até na morte, alava-se pra o Sol!
- Quando um filho do Irã sumia-se do rol
Dos que lutam, seu corpo enregelado e hirto
Não ia para o chão, a transmudar-se em mirto,
Em rosas, em poeira, em vermes e em boninas!
O cadáver, então, era elevado às finas
Transparências do ar, numa coluna ereta,
E lá, em pleno azul, sob a flumínea seta
Do astro criador, - as aves famulentas
Vinham arrebatar as carnes friorentas
Do morto! Este ascendia às regiões solares
Disperso na amplidão, rasgando os fulvos ares,
E, com os pássaros bons de garras curvilíneas,
Ia se incorporar às rubras, às sanguíneas
Fotosferas do Sol, cheias de apoteose,
Onde a vida de tudo abrolha, ferve, explode!...

Nós os homens de hoje, iguais ao persa antigo,
Também vamos buscar, a um outro sol, abrigo
Contra os males brutais e contra o desalento.
Quando a pua do tédio - o mísero instrumento! -
Sorrateira e cruel perfura-nos a alma,
E a pesada mudez, horrivelmente calma
Da descrença, nos mata a última energia,
Machucando no caule as rosas da Utopia;
Quando o cadáver nu da nossa Inteligência
Tressua lividez; - nós vamos à eminência
De onde ainda se avista a lua do Ideal
Que dulcifica o céu e dulcifica o val,
E expomos este morto - a nossa Atividade -
Ao reflexo bom, à ingênua claridade
Do astro santo que tem o puro nome de ARTE!
E vemos, ao chegar, que vem de toda parte,
Voando e revoando, estranha passarada
Alegre como o campo em hora de alvorada.
São as aves do azul. Chamam-se: esta, AMOR,
Aquela. INSPIRAÇÃO, aquela outra, ARDOR,
Esta, IMAGINAÇÃO, e, além, ess’outra, CRENÇA.
Sobre nós se debruça a multidão extensa,
A turma alti-volante. E, então, lá para o astro,
Principia a partir em luminoso rastro,
O nosso corpo todo, a nossa alma inteira,
Presos, esta e aquele, à asa alvissareira
Dos pássaros púgeis! A doce lua da Arte
Atira ao nosso encontro o opálico estandarte
Da sua radiação serena, mansa e vasta,
E só nesse momento é que a energia gasta
Renasce dentro em nós!... E, como o persa, vão
Assim, os nossos ais à estrela da Ilusão!
                        
***

E qual uma estridente e alarmadora trompa
Que rasgasse a amplidão em notas vitoriosas,
Da Arte e brônzea voz sonorizou o espaço.
O labor começou. Tímidas, vagarosas,
Puseram-se a nascer as criações. No baço
E rouvinhoso olhar do proto-homem viu-se
Ondear um clarão divinatório. Abriu-se
A rude psyché do nosso antepassado,
E um bando de emoções ruidoso, alvoroçado,
Saiu dela, assim como abelhas da colméia!
Construções do granito e construções da Idéia
Surgiram pouco a pouco.
E da choça de palha,
Da cabana de colmo e da casa lacustre,
Das danças sensuais no bosque que farfalha,
Dos cantos imbecis onde não bóia o lustre
Da poesia vivaz que transfigura as cousas;
Passou-se a remover enormíssimas lousas
Para fazer Babéis, e passou-se a riscar
Com o diamante Ilusão este vidro sem par
Da existência!
Elevou-se, altiva, Babilônia;
O templo de Diana encheu de sombra a Iônia,
E o Mahabarata - um astro! - encheu de luz a Ásia.
Fabricou-se na terra encantada de Aspásia
O Júpiter Olímpio, e criou-se também
Aqui o Nibelung e o Ramayana além.
Afrontaram o céu pirâmides agudas;
Dólmens fenomenais, torres de pedra mudas
Sitiaram a terra. Erigiu-se o farol
De Alexandria, - um sol espiando o outro sol! -
As muralhas da China, o colosso rodiano,
O grego Parthenon e o Forum de Trajano,
Kremlin, a catedral formosa de Florença,
Alhambra, o Coliseu, a Basílica imensa
De São Pedro e a Torre inclinada de Pisa,
O Palácio de Ciro aonde o ouro, à guisa
De cal, os muros cobre; o Louvre, o Escurial,
Versalhes e por fim Notre Dame, a imortal;
- Surgem -visões de pedra! - em cima das cidades.
Vêm paralelamente, assombrando as idades,
Os bons, os geniais e os rútilos poemas:
A Epopéia, fundindo as cóleras supremas
E as supremas ações, engendra um dia a Ilíada
E outro dia a Odisséia - esta robusta Dríada
Que habita e que domina a sagrada floresta
Da Poesia!
E depois... sucedem-se os assombros:
A Itália divinal agita a loura testa
E, como Atlas, toma em cima dos seus ombros
Estes dois céus: Eneida e De rerum natura;
Tasso e Jerusalém aparecem na alvura
Infinita da Glória. A Divina comédia
- Carro a fulvos corcéis, guiado pela rédea
Da translúcida Fé aos reinos dos mistérios -
Deslumbra a multidão e atravessa os etéreos
Páramos ideais da Rima e da Harmonia!...
Afinal, como um sol purpúreo que alumia
Uma nesga do azul, com brilhos em miríadas,
Alteia-se estuante o corpo dos Lusíadas!

***
                              
ARTE! Mulher lirial, criatura encantada,
Emanação do sol, filha de uma alvorada
Com algum semideus da velha Grécia heróica,
- Eu saúdo-te! Tu, que honradamente estóica
Tens sabido guardar na epiderme de opala
A frescura da flor que um lago manso embala
E a rijeza cruel de uma lâmina aguda;
Tu, que eu comparo a uma elétrica Amazona
Cheia de força agreste e de beleza muda
A rasgar, em corcel fantástico, esta zona
Onde a vegetação dos ideais rebenta
Apoplética, em luz, gloriosa, febrenta;
Tu, que és poderosa e a plástica expressão
Desta vida interior que vive o coração
Humano, e que reflete em nossa inteligência
Como nuvem no mar ou um bem na consciência;
Tu, que tens por tarefa interpretar o mundo
Colorindo-o de azul, com a tinta do profundo
Íris das ilusões e da Utopia loura;
- Tu hás de, para mim, ser sempre a imorredoura
Fonte desta alegria e bravura serena
Que dormem no meu sério e fazem-me da pena
Um florete lavrado, em cuja folha canta
A corda de uma harpa heroicamente santa!
Como tu hás lutado, estranha criatura!
E como tens sofrido! Essa pupila escura
Decerto viu morrer Chatterton, Malfilatre,
- Almas presas à dor, corpos presos ao catre -
Viu Homero esmolar sem sandálias nos pés,
Viu ir à guilhotina o poeta do Hermès,
Viu a prisão de Tasso, o exílio de Camões,
Viu Gerard de Nerval buscando as solidões
Dos becos de Paris para enforcar-se, viu
Os martírios de Hugo!... E que pranto caiu
Do teu radioso olhar amplo, amoroso e quente
Sempre que ele encontrou esses males em frente!
Mas, Arte, o teu valor não se verga jamais!
Como um remo que cinde uma onda, tu vais
Rija, tersa, feliz, correndo o globo inteiro:
Plantando aqui, colhendo além, sorvendo o cheiro
Límpido e matinal dos jardins enflorados;
Visitando não só as almas como os prados;
Sentindo ao mesmo tempo as paixões explodirem,
Os vícios bestiais cinicamente abrirem
As corolas cruéis nos caules afrontosos,
E os vergéis tropicais, os pomares seivosos,
Rirem, na luz do sol, verdes como absinto!
Neste momento eu vejo um deslumbrante cinto
De idólatras, a pôr no teu busto sagrado
Uma nuvem de incenso oloroso e nevado.
São, de um lado, os viris e honestos portadores
Das fecundas lições, dos sonhos e labores,
De Balzac, o escultor deste marmor - Goriot,
E do outro lado são os crânios em que andou
A alma de Lucrécio inspirando a valente
Intuição sem par da Poesia que sente
O sopro da Ciência entumecer-lhe o peito.
Diviso, então, no ardor do religioso preito:
Flaubert, Zola, Daudet, os Goncourt, - a pujante
Plêiade fraternal, austera e trovejante
Dos modernos, dos bons espíritos geniais
Que já não vão correndo, erradios, atrás
Da sereia fatal dita Imaginação
Ou Fantasia, e têm no sensório a visão
Nítida do Real e da Verdade. Além
Vejo Coppée, Lefèvre, Stupui, Bartrina,
Berthesène, Sully. E em meio do vai-vém
Das novas odes vejo o busto da heroína
Akerman, redourando o Prometeu!

Ó Arte!
Vamos! É despregar as asas do estandarte
E seguir! Deves ser, em tua enorme faina,
Como vela de nau, que, enquanto não amaina
O vento, arqueia o bojo e desafia a vaga.
Não importa sentir a maldição e a praga
Da Rotina boçal, que às tuas plantas ladre!
Tens muito que explorar. Tudo quanto se enquadre
Na larga psychè da Humanidade, - deve
Ser pra ti um farol radiante que te leve
Ao país do Ideal!
Desde a pérola - pranto
Até o riso flor, até o perfume e o canto;
Desde o infante grácil até o herói ferido;
Desde um eterno amor até o amor vendido;
Desde a marcha dos sóis até a das idades;
Desde o progresso humano até as claridades
Nervosas do luar; desde as paixões serenas
Até o Ódio e a Dor - negros como geenas;
Desde um seio de amante e um regaço de esposa
Até o vegetal que junto de uma lousa
Cresce, na seiva má do barro funerário;
Desde um fio de azul e desde um nectário
Até a casta luz do astro da Verdade;
Desde a Glória imortal, a Bravura e a Bondade
Até a planetária irradiação da Ciência...
- Tudo deve atrair a doce transparência
Do teu fulgente olhar meditabundo e puro!
ARTE! Em teu ventre cresce este feto - o Futuro!

(Visões de hoje, 1881.)


* Poeta, jurista e professor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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