quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Paixão obsessiva por um fantasma


O livro “O Aleph” é tido e havido por parte considerável dos críticos literários como o melhor que Jorge Luís Borges publicou. Discordo. Considero “toda” sua obra num mesmo patamar (e superior) de qualidade, de inventividade e de criatividade, quer a ficcional, quer a de não-ficção. Foi um escritor único! Foi desses homens de letras tão originais que ninguém sequer se aproximou, mesmo que remotamente, dele no quesito originalidade. Seus contos seguem a linha do realismo fantástico e nos induzem ao raciocínio, à reflexão, ao estabelecimento de inu8sitados parâmetros, diversos dos que estamos acostumados a lidar para aferir o homem, o mundo, o universo e o que entendemos como “realidade”.

Não quero, com isso, diminuir a importância de “O Aleph” e muito menos considerar esse livro como obra menor em sua bibliografia. Muito pelo contrário! É tão bom, que merece análise mais detida, mais profunda, isolada, particular (melhor seria redigir até um tratado a propósito),  que me proponho a fazer oportunamente. “O Aleph” é uma obra-prima de realismo fantástico, que deve figurar, obrigatoriamente, em toda boa biblioteca que se preze. Os contos do livro são: O imortal; O morto; Os teólogos; História do guerreiro e da cativa; Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874); Emma Zunz; A casa de Astérion; A outra morte; Deutsches Requiem; A busca de Averróis; O Zahir; A escrita de Deus; Abenjacan, o Bokari, morto no seu labirinto; Os dois reis e os dois labirintos; A espera; O homem no umbral; e, finalmente, O Aleph.

Meu foco, hoje, é o conto que dá título ao livro. Dele emerge uma personagem feminina absolutamente inesquecível. O curioso é que ela não participa diretamente da trama, embora seja onipresente na lembrança do narrador. Por que? Porque está morta. Trata-se, pois, de paixão, de obsessão, de veneração, literalmente, por “um fantasma”. Borges inicia o conto da seguinte forma: “Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita”.

O curioso é que a personagem, embora amada, venerada, adorada pelo narrador, nunca lhe correspondeu. Beatriz foi casada com Roberto Alessandra, de quem se divorciou. Teve vários casos amorosos. Arrastava as asas para seu primo-irmão Carlos Argentino Daneri, mas... o narrador, ainda assim, venerava-a. Relembrava cada passagem marcante da sua vida através de fotografias. Borges escreve a respeito: “De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha (do casarão da Rua Garay, em que havia um ‘aleph’), de novo estudaria as circunstâncias de seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, em cores; Beatriz, com máscara, no carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia de seu casamento com Roberto Alessandra; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês dado por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e em três quartos de perfil, sorrindo, com a mão no queixo (...)”. Em suma, Beatriz, Beatriz e Beatriz...

A certa altura, Borges descreve aquela mulher tão entranhada no coração e na mente do narrador, assim como seu rival, o destinatário da sua afeição, da seguinte forma: “(...) Beatriz era alta, frágil, ligeiramente inclinada; havia em seu andar (se for tolerável o oxímoro) uma como que graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. A duas gerações de distância, o ‘esse’ italiano e a abundante gesticulação italiana sobrevivem nele. Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. Excede em imprestáveis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas (...)”.    

Para mim, o ápice, o clímax, o ponto alto desse conto, cujo enredo central sequer é essa paixão sem a mais remota esperança que enfatizei, mas a existência ou não do “aleph” no porão do velho casarão da Rua Garay, é este trecho, quase escondido, do conto: “ (...) Junto ao vaso sem flor, no piano inútil, sorria (mais intemporal que anacrônico) o grande retrato de Beatriz, em pesadas cores. Ninguém nos podia ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse-lhe: – Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou Borges (...)”.

Para não deixar o leitor que não tenha lido o livro, e por consequência o conto a que me refiro, na mão, esclareço o que é o tal     “Aleph”. Para tanto, recorro aos préstimos do crítico literário Luís Duarte. “No estudo dos alfabetos vamos ver que o aleph ou alef, é a primeira letra de vários sistemas de escritas, como o alif do alfabeto árabe e o aleph do alfabeto fenício. O aleph fenício deu origem ao alpha grego, significando a consoante “a” . Do alpha veio o A latino e o A cirílico. A origem do nome aleph é o desenho de um touro, ou aluf em hebraico antigo. Normalmente simboliza o começo de algo. Não possui sonorização e é utilizada apenas para indicar uma vogal sem acompanhamento de uma consoante. Na crença da Cabala o Alef tem seu papel fundamental em toda a mística”. Para Borges, a palavra significa o ponto de onde é possível se ver todos os outros pontos do universo.

Como se vê, tudo nesse livro é fantástico, marcante, originalíssimo (e aqui cabe muito bem o superlativo, tão ao meu gosto de exagerado por natureza) e inesquecível: o conto que lhe dá título, “o ponto de onde é possível ver todos os outros pontos do universo”, a obsessão do narrador por um “fantasma” e, sobretudo, a personagem feminina que não participa do enredo, por haver morrido logo no primeiro parágrafo da história, mas que é onipresente, ou seja, Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo.

Boa leitura.

O Editor.

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