domingo, 23 de agosto de 2015

Jornal do caos



* Por Ronaldo Bressane.


Lua



O orelhão da esquina tocou às 4h48. Um só toque e parou. Achei que o céu estava particularmente roxo hoje. Porém, o universo, descobriram – outra decepção horrível, eu tinha lido o mês passado no caderno de Ciência do meu jornal – era bege. Tão bege quanto as calças em que me colocariam depois de descobrir minha gloriosa infâmia. Por que fui cismar de matar o tal casal de velhinhos, a outra noite? E com uma chave de fenda? Estou tão cansado que poderia dormir por mil anos – o mesmo sono dos iguanas sem nome agora tão silenciosos enroscados um no outro – e ainda assim não teria conseguido formular uma frase só que fosse posse de minha exclusiva elegância, oh, nuvens rubras, onde estais, não me abandoneis, Lúcifer, mais bela das estrelas, ouro a quem oro (oro, oras, o telefone não tocou novamente, e eu queria tanto que o cavalo alado escapasse da minha perniciosa cabeça... consigo vislumbrar, deitado na cama no meio da minha sala de espelhos, sobre todos os capachos do universo, o jornal trazendo as notícias de ontem, a revista semanal com os fatos da semana passada, os prognósticos, as expectativas em preto e branco coluna sobre coluna, cheiro da tinta nos dedos, todos os eventos do mundo nas mãos e nenhuma só vírgula com estilo: ao morrer, prometo não me transformar num epitáfio – só, antes, a ventura de um único gesto de decência).

Oooahh. Foco. Foco. Vamos... Depois que terminei de escrever isto, me senti mais entediado ainda e desci um frontal com pepsi e, por via das dúvidas, um dormonid... tá, mandei junto uma vitamina C. Muitos acontecimentos numa só semana, e todos vãos. Fui mais forte que imaginava: todos os sete envelopes pardos fechados... Vou enfiar eles aqui entre essas páginas, como lembrança. A licença acabou. Voltar ao trabalho... Deadline: logo mais, com forças para sair da cama, finalmente vou apagar todas as luzes do apartamento. As janelas fechadas... As frestas vedadas... O gás aberto.


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Oitavo e último fragmento de “Jornal do caos”, de Céu de Lúcifer [Azougue, 2003].

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e atua no HYPERLINK http://impostor.blogspirit.com http://impostor.blogspirit.com.




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