sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Holocausto, traição e tempo


* Por Urariano Mota


Somente para corações fortes recomendo o romance que eu ganhei no Dia dos Pais, e somente ontem pude iniciar a leitura: “Capesius, o farmacêutico de Auschwitz”.

Insisto: recomendo-o, mas somente para corações fortes.   O livro não possui o nível de reflexão e estética de Primo Levi em “É isto um homem?”. Mas tem uma contundência mais imediata. Ontem, antes de dormir, comentei com a minha mulher: a gente conhece muito pouco a natureza humana. Na maioria das vezes, conhece nada.

Quantas vezes nos chocamos com a barbárie em países africanos (são bárbaros, logo), quantas vezes nos revoltamos, com absoluta justiça, contra o fundamentalismo que corta cabeças? Mas o que dizer de militares cultos, de uma Alemanha culta, de oficiais que compram dentes de ouro de prisioneiros e não cumprem o pagamento de um copo d’água? 

Copio do release da editora:

“Quando vivia em Schässburg, na Transilvânia, Victor Capesius era farmacêutico e representante comercial dos produtos Bayer. Durante a guerra, foi recrutado para ocupar o prestigiado cargo de Oficial da SS como farmacêutico-chefe de Auschwitz do outono de 1943 até a evacuação do campo de concentração. Entre as suas atribuições constavam distribuir o gás utilizado nas câmaras de extermínio e selecionar os que iriam para a morte.

Certo dia, após a chegada de um trem de sua terra natal, Capesius identificou vários homens e mulheres, antigos vizinhos e conhecidos, que desembarcavam no principal campo de concentração do nazismo; pessoas que sequer imaginavam o massacre final que as aguardava. A sangue-frio, enviou muitos deles para as câmaras de gás e se apossou de seus objetos de valor.

Por meio da investigação das relações entre os vários personagens que estiveram em Auschwitz – tanto as vítimas quanto agentes que trabalharam em prol do Holocausto –, Dieter Schlesak nos apresenta uma complexa colagem de narrativas, documentos e imagens do horror nazista. Capesius, o Farmacêutico de Auschwitz é uma obra comovente, inquietante, dada a intensidade de sua pujança linguística, carregada de autenticidade”.

Copio do próprio livro:

“Vejo labaredas flamejando em uma vala comprida, ouço urros, choro de criança, cachorros latindo, tiros de revólver. Chamas altas encobrem sombras pululantes. O ar está carregado de fumaça, de cinzas voando e de cheiro de carne e cabelos chamuscados. ‘Não pode ser verdade’, berra o homem ao meu lado. Cães pastores-alemães tangem pessoas vivas em direção às labaredas: mulheres, crianças e doentes. Uma onda de calor. Em seguida, tiros. Uma cadeira de rodas com um velho é atirada às chamas — grito estridente. Bebezinhos voam para o fogo como se fossem vasos brancos de flores... Um menino tenta escapar, mas os pastores-alemães o caçam, obrigando-o a ir para o meio do fogo. O grito fica para trás. Uma mulher com o seio descoberto amamenta seu filho. Ela e o bebê caem na incandescência. E lá se vai um gole de leite materno para a eternidade”

Quero dizer, enfim. A gente perde a vida com tanta bobagem, lendo tanto lixo, nulidades, para matar o tempo, “enquanto o tempo nos enterra”, como escreveu Machado de Assis. E livros assim evitamos, porque “são pesados”. Somos levianos, melhor seria dizer. Devíamos, devemos ser bem mais rigorosos, fominhas, com o que fazemos do nosso reduzidíssimo tempo.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.


Um comentário:

  1. Diante da pilha de livros separados para de fato eu ler, tenho dúvidas. Não tenho tempo nem de ler os clássicos, os tantos que ainda me faltam, pois o tempo me foge, por extinção e não por desculpas ou fuga. O que ler? Ainda indecisa. Para mim é difícil abraçar a barbárie, a insensatez, as ações macabras nossas contra nossos semelhantes. Até escrever isso nos incomoda. Somos maus e covardes.

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