quarta-feira, 26 de agosto de 2015

CARTAS QUE NÂO SE REPETIRÃO JAMAIS Nº 5 – DE URDA ALICE KLUEGER PARA JORGE AMADO E ZÉLIA GATTAI

* Por Urda Alice Klueger


Blumenau, 03 de janeiro de 1995.

Meus queridíssimos:

O atribulado mês de dezembro, com o final do recadastramento bancário (sou bancária também), impediu-me que lhes escrevesse há mais tempo, como era do meu gosto. Janeiro trouxe mais calma, é só dia 3 e já consigo sentar-me um pouco à máquina, e como não escrever, em primeiro lugar, para vocês?

Queridíssimos, eu disse acima, queridíssimos mesmo, bem dentro do meu coração, inesquecíveis pessoas que me fascinaram e me encantaram no novembro da Bahia, naqueles dias encantados de Salvador, e não sei do que tenho mais saudades, se de Salvador ou de vocês.

É muito difícil para mim escrever cartas curtas; impinjo-lhes outra longa. Volto no tempo, no tempo em que aprendi a ler, no tempo em que comecei a devorar a nossa grande Biblioteca Municipal, que a da escola, a de casa e a dos vizinhos já devorara (vivi na expectativa de fazer 12 anos para poder me associar à Biblioteca Municipal), e na descoberta das minhas paixões brasileiras. Tive que ficar um pouco mais velha para apreciar devidamente Machado de Assis, Graciliano Ramos, mas “O Guarani”, de José de Alencar, foi fascínio imediato. E os contemporâneos?
Sem dúvida Érico Veríssimo, Jorge Amado, e também José Mauro de Vasconcelos, com seu Pé de Laranja Lima, seus índios, seu Araguaia.

Parêntesis: ano passado, aos 42 anos, reli “Meu pé de Laranja Lima, curiosa por saber o que havia naquele livro que me fizera chorar tanto aos 15 anos. O que descobri? Descobri que ele fazia chorar muito mais aos 42 anos, entrei numa emoção tão grande que fechei as cortinas, para que os vizinhos não me vissem assim naquele choro incontrolável, tamanha a emoção do livro. É a velha história de quem é rei nunca perde a majestade. O bom livro é inalterável. Acho que é hora de fechar parêntesis.

Daí, um dia, como já contei em outra carta, perdi Érico Veríssimo e minha vida ficou mais pobre e menos luminosa por muito tempo. José Mauro de Vasconcelos também se foi, só deixou a ternura. E o grande mestre Jorge Amado continuava lá, livro novo a toda hora, inesgotável capacidade de criação, muito me fez rir e chorar ao longo dos anos. Agora, conhecê-lo? Isso estava fora das minhas expectativas, nunca sequer sonhara um dia que tal poderia acontecer. Mas aconteceu, e como esquecer o quão lindo foi?


Outro parêntesis: perdoe-me o sr., mas como não tratá-lo senão por Mestre? Foi uma vida inteira de aprendizado com o sr., mesmo contra a sua vontade o sr. foi meu mestre. Eu sei que isto pode se tornar até chato, pode incomodar. Cá por Santa Catarina há uns jovens escritores que também ficam enchendo a minha bola e isto me incomoda, mas o que fazer com eles? Tive muitos mestres na vida e o sr. foi um deles; não sei de que outra forma chamá-lo. Sugira-me outro tratamento, se o aborreço demais. Fim do parêntesis.

Daí, na Bahia mágica, o milagre do encontro. Que Jorge Amado não fique enciumado, eu já o amava de longo tempo, amei-o ainda mais ao vivo mas, sem dúvida, apaixonei-me perdidamente foi por Zélia Gattai.

Não tenho adjetivos para definir o que senti em relação à sra., Dona Zélia! A sra. é linda, é meiga, é simpática, é forte, é terna, é perfeita. A ternura e a força se confundem na senhora de uma maneira tão sutil que a gente fica sem saber do que gostar mais, o que admirar mais. Eu tenho falado tanto da sra. para as pessoas daqui, mas o que senti em relação à sra. foi tão fantástico que julgo não estar conseguindo passar para as pessoas o que realmente senti. Quando eu crescer, tudo o que quero é ser como a senhora. Penso na foto da contracapa de “Um chapéu para viagem” e em como a senhora não mudou nada nestes últimos 50 anos. Deus a abençoe e a guarde sempre assim; Deus abençoe e guarde sempre vocês dois.

Meus queridos, foi bom demais ter estado com vocês e ter estado com vocês na Bahia. Aliar as duas coisas, a alegria de estar com vocês e o charme da Bahia foi quase demais para mim. Vim-me embora da Bahia com a alma radiante e luminosa; faz só um mês que aqui cheguei e já me bateu, de novo, uma vontade louca de estar em Salvador. Não sei quanto tempo aguentarei sem ir de novo para essa terra que acho que já adotei.

Não voltei sozinha; cheguei em Santa Catarina acompanhada de livros. Li-os logo, li-os em seguida, um atrás do outro, sem parar, a começar por “Um chapéu para viagem”. Ternura pura, que graça, que documento! D. Zélia, a sra. é um arquivo vivo de um tempo da História do Brasil, e como sabe registrar as suas memórias! Foi emoção do começo ao fim da leitura, emoção acentuada pelo impacto do recente contato com a sra. Impaciente, espero a publicação do seu romance – o que não sairá dessa sua personalidade incrível?

“Terras do sem fim” reli em seguida – fazia anos que lera esse livro, mas a emoção dele foi a mesma. A radiografia da sociedade cacaueira em formação é perfeita; os personagens, fortíssimos; não há como não reverenciar o que foi mestre para mim e para tantos. E, depois, “Mar Morto”, que nunca lera. Deus meu, é possível haver coisa mais terna e perfeita que “Mar Morto”? Fico pensando na genialidade: só alguém genial poderia, tão jovem, escrever um livro assim. Daí me perco em especulações: como alguém tão jovem poderia ter escrito um livro assim, ou só alguém muito jovem poderia tê-lo escrito? Sei que, um mês depois, o livro está tão presente em mim, que na noite de ano novo, na poluída e densamente cheia de gente praia de Camboriú, fiquei, ansiosa e curiosa, espiando o que acontecia no mar, ansiando para que Janaína se manifestasse, viesse dar uma olhadinha nas oferendas que lhe faziam, imaginando se se daria ao trabalho de receber as homenagens de uma praia de quase só gente branca, tão longe das terras de Aiocá. Obrigada, meu mestre, também por Janaína.

E há, ainda, o livro sobre o Pelourinho, que me mata de saudades a cada vez que o abro. Tenho-o mostrado às pessoas e as pessoas dizem: “Ah! Que bonito!” – mas eu sei que elas não entendem. Como entender o Pelourinho sem amá-lo, e como, para alguém de tão longe como eu, amar o Pelourinho sem antes ter travado conhecimento  com Jorge Amado? Obrigada, muito obrigada, meu querido mestre, por me haver aberto tantas portas de amor na vida, por ter me dado tantas coisas lindas, a mais de todas, eu creio, o Pelourinho. Eu ainda irei viver lá.

Meus queridíssimos, Axé. Tudo de bom para os dois em 1995, este ano de Bodas de Ouro, não é mesmo? Falta-me dizer, ainda, o quanto me comoveu o evidente carinho que têm um para com o outro, invejável coisa depois de meio século, coisa que parece ficção de Jorge Amado. Eu os amo.

(Digitalizado em 20 de agosto de 2015, por Urda Alice klueger, e-mail urdaaliceklueger@gmail.com).

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Um comentário:

  1. Meiguice é você, Urda, do começo ao fim, pensando alto e elogiando com a sinceridade dos apaixonados. Eu também amei Érico Veríssimo e José Mauro de Vasconcelos, e dele marcou-me mais "O Doidão", que se passa em Natal. Jorge Amado li quase tudo. Não consegui terminar "Tenda dos Milagres". Para mim é o seu livro mais hermético.

    ResponderExcluir