quinta-feira, 30 de julho de 2015

Uniforme

* Por Gustavo do Carmo

O Externato Santa Madre de Deus sempre foi extremamente rigoroso com o uniforme dos seus alunos. As cores eram as mesmas para meninos e meninas: camisa ocre, calça ou saia cinza, calçados pretos e adereços verdes. Para a educação física, camisa branca com golas e bainha de manga azuis-marinhos, bermuda azul marinho e tênis e meias brancos.  

Os detalhes variavam de acordo com o sexo. Os meninos usavam camisa abotoada com seis botões, obrigatoriamente posta para dentro da calça. A gravata tinha que estar bem no centro do tórax e se estender até um centímetro de distância da cintura. E sua ponta deveria formar uma seta. A calça deveria ser mantida na cintura com um cinto preto com fivela dourada (de alumínio), bem polida, com o brasão da escola gravado, e alinhada no centro.

As meninas usavam camisa do mesmo tipo, mas tinham um botão a menos e teriam de ter uma renda na altura dos ombros. A gravata era mais curta, com ponta reta, devendo terminar na metade do peito e possuir dois laços na altura da gola. Além de suspensórios fixados na cintura da saia e passando pelos ombros. Também era obrigatório colocar a barra da camisa para dentro da saia pregada (dois centímetros cada vinco), que deveria cobrir totalmente os joelhos.

Meias caneladas até os joelhos eram usadas por ambos os sexos. No entanto, eles usavam pretas e elas bege. Sapatos e sapatilhas pretos deveriam ser totalmente lustrados até ficarem brilhantes. Não poderia haver um único friso branco no uniforme. Até a caderneta teria que estar totalmente guardada no interior do bolso, obrigatoriamente no lado esquerdo do peito. A camiseta de educação física dos meninos era regata e a das meninas tinha uma pequena manga.  

O aluno que estivesse com uma orelha da barra da camisa para fora da calça, um botão faltando, a gravata mal amarrada e desalinhada, assim como o cinto e o suspensório, era terminantemente proibido de entrar na escola. E ainda suspenso por um dia. Na reincidência, ficava uma semana em casa. Na segunda, um mês. Na terceira, expulsão. Não adiantava desobedecer as regras para ficar em casa por um dia ou uma semana e depois andar na linha para dar tempo às freiras esquecerem da punição. A infração era registrada em livro, mesmo se fosse reincidida no ano seguinte.

O uniforme era apenas um detalhe da disciplina rígida do Externato Santa Madre de Deus. Faltas pessoais sem apresentação de atestado médico, não-apresentação do dever de casa e atrasos também rendiam punições. Alunos flagrados brigando ou namorando eram expulsos sumariamente. A fiscalização era feita com prazer pela Madre Tereza, totalmente oposta a sua xará indiana. Sentia um orgasmo ímpar quando flagrava alguém desrespeitando as regras.  Principalmente quando não se olhava nos sapatos mal engraxados e fivelas sem polimento.  

Quem sofria muito com isso era Tayla. Ela se arrumava tanto para respeitar as regras do uniforme que ficava paranóica. Penteava o cabelo de cinco a dez vezes antes de sair para a escola. Para desespero da mãe que tinha muito trabalho para arrumar o seu rabo de cavalo, que também teria de estar impecável.

Tayla era sempre barrada na porta da escola por causa do seu cabelo desalinhado e também por defeitos mínimos no uniforme. Só não era suspensa, e posteriormente expulsa, porque era uma ótima aluna. Tirava dez em tudo, apesar da pressão psicológica que sofria por causa do uniforme. Tinha como punição ouvir o sonoro sermão da madre Tereza. Ouvia tudo sem retrucar e acatando as ordens com um submisso “Sim, senhora”.

Nos finais de semana, quando se reuniam na sorveteria, no cinema ou no shopping, os alunos mal se reconheciam sem uniforme. A rigidez era tanta que pareciam estar nus quando vestiam roupas comuns.

E a geração dos anos 1980 do Externato Santa Madre teve sorte. Quem estudou lá até os anos sessenta ainda tinha que usar boina. A dos meninos posicionada no meio da cabeça e a das meninas na diagonal. Sem falar no uso compulsório de um casaco verde, que se tornou opcional nos dias frios. Ainda na época de Tayla, ninguém podia usar agasalho de fora da escola.

Tayla estudou no Externato do jardim até a oitava série do primeiro grau (ensino fundamental nos dias de hoje). Para fazer o ensino médio, mudou-se para uma escola mais liberal, que dispensava o uso dos uniformes. Na formatura do Externato, usou o rigoroso uniforme pela última vez. 

Quando retirou seu histórico e outros documentos para se matricular na nova escola, jurou nunca mais pisar no Externato. Sequer passar pela mesma calçada do casarão. Mesmo tendo enorme carinho por algumas freiras e professores e de sentir saudades deles. Embora fosse muito querida pela maioria dos funcionários, ela ficou muito traumatizada com os sermões severos e agressivos de Madre Tereza.

Cresceu e entendeu que, por mais que seja necessária uma boa rigidez para disciplinar os alunos, o autoritarismo de Madre Tereza não era apenas para impor respeito. Ela parecia não ter coração e sentia prazer em humilhar os alunos e funcionários. Naturalmente, os pais de Tayla não concordavam com ela e a repreendiam por criticar a diretora do colégio.

Um dia, passando de ônibus pela escola, viu um movimento fora do normal na porta do Externato. Foram mais de dez anos estudando ali. Tempo suficiente para conhecer todos os horários. Mesmo passado um ano fora do colégio religioso ainda se lembrava de toda a rotina. Deu sinal e desceu antes do seu destino só para saber o que aconteceu em sua ex-escola. Assim que saltou, viu as quatro bandeiras — do Brasil, do estado do Rio de Janeiro, da cidade e da escola — a meio mastro. Abordou uma senhora e perguntou:

— Com licença, minha senhora. Posso saber quem morreu?

— Ah, minha filha! Foi a Madre Tereza. Coitada. Estava tão bem. Morreu de repente.

— Ah, tá! Obrigada.  

— Você a conhecia?

— Sim, já estudei aqui. Ela era rigorosa, mas era para educar melhor os alunos. Com licença.

Tayla só faltou pular de tanta alegria com a notícia da morte da Madre que a torturava psicologicamente. Só não explicitou a sua felicidade por educação com a senhora. Caminhando de volta para o ponto de ônibus, foi abordada pela amiga Giselle, que ainda estudava lá. Esta parecia ter inveja de ver a ex-colega livre daquele uniforme quente, cafona, feio e chamativo.

Para Giselle, Tayla não se preocupou em extravasar a sua felicidade com o falecimento da antiga professora, diretora-geral e inspetora do Externato.

— Menina, que bom te encontrar por aqui! Fiquei sabendo que aquela bruxa morreu.  

— A Madre Tereza não era bruxa. Você está sendo insensível. Eu fiquei muito triste.

— Fala sério, Giselle! Ficar triste por aquela mulher ter morrido. Você também a odiava. Não estou te reconhecendo.

— Ah, Tayla! Não sei o que me deu... é que estou com um sentimento de tristeza.

— Vamos fazer o seguinte? Vamos tomar um refrigerante lá na padaria? Aí a gente comemo... quer dizer, lamenta a morte da Madre Tereza.

— Eu sei que você queria dizer comemorar. Reclamou Giselle. — Mas só vou com você para a gente colocar o papo em dia.

Tayla e Giselle foram até a lanchonete que ficava a duas esquinas da escola, no outro lado da rua. A mesma que frequentava quando estudava. O estabelecimento tinha algumas mesas que estavam cheias de alunos. Uns tristes pela morte da religiosa. Outros esperançosos em se verem livre do uniforme antigo. Os demais, alheios ao que aconteceu, conversavam sobre futebol ou novela, mulheres ou homens, namorados e namoradas. Com muita sorte as duas amigas encontraram uma mesa vazia. A última.

Tayla desistiu de ir para a aula do segundo grau naquele dia, para ela, o melhor da sua vida. Enquanto Giselle — que na época em que estudava com Tayla era a mais gazeteira do Externato, tendo sido suspensa duas vezes — pediu apenas um refrigerante, Tayla pediu um chopp. Depois pediu o segundo. Quando pediu o terceiro, já bêbada e falando mal da ex-diretora, Giselle ficou horrorizada com a falta de consideração da ex-melhor aluna do colégio e a deixou tomando um porre sozinha.

Tayla dançou sobre a mesa da padaria e agitou os estudantes a soltarem suas camisas e tirarem suas gravatas, anunciando que novos tempos iriam surgir. As meninas entraram na onda e soltaram os suspensórios enquanto os meninos largaram os cintos. Ela só não fez um strip-tease porque o dono da padaria não deixou. Foi embora. Chegou ébria em casa e disse para os pais que saiu com os amigos da nova escola depois da aula.

Um mês depois, o aumento da violência na cidade e o descontrole comportamental dos alunos fizeram a nova escola de Tayla adotar um uniforme pela primeira vez para os alunos do segundo grau. Para alívio da moça e dos seus colegas, era obrigatório usar apenas camiseta de algodão azul com a logomarca da instituição bordada e calça jeans preta para todos. Nos dias mais quentes poderiam ser usadas bermudas jeans até os joelhos. As turmas de ensino fundamental sempre usaram. Eram pouco mais formais: camisa de botão branca com o emblema colado em silk-screen, que poderiam ser usados para fora da calça ou da saia marrom. Os sapatos ou sapatilhas eram pretos e a meia branca.

A disciplina era controlada pelo coordenador Nazareno, bastante rígido. Gritava forte quando necessário. Sabia e conseguia impor respeito. Era um doce de pessoa fora das aulas. Tayla continuou sendo a boa e comportada aluna de sempre. Nunca se sentiu ameaçada pelo coordenador. Mas voltou a ficar presa ao uniforme.    

Novamente libertou-se do vestuário padrão quando entrou na faculdade de medicina. Poderia retornar a usar a roupa que quisesse nos primeiros períodos. Só que, mais uma vez, se uniformizou quando precisou trabalhar para pagar a faculdade. Conseguiu um emprego de atendente em um hospital. Sua roupa de trabalho era um vestido tubinho preto com blazer azul e a logomarca do hospital, ornamentado por um lenço amarelo claro que atravessava o pescoço por dentro da gola.

Prestes a se formar, passou a se vestir de branco, como todo médico. O jaleco tornou-se seu uniforme desde a residência no próprio hospital onde começou a trabalhar até o fim da sua carreira profissional como Tayla Figueiredo.

Casou-se com um empresário frio, que passava a semana inteira engravatado com o mesmo terno para, nos finais de semana, sair de casa com o uniforme do time de futebol da empresa e só voltar à noite.

Sozinha, acessava a internet para tentar apimentar a vida sexual. Arrumou um namorado extra-conjugal que era coronel do exército. Na primeira noite, o amante queria realizar a fantasia de transar com uma colegial.

Tayla vestiu o uniforme do Externato Santa Madre de Deus, que não usava desde a oitava série. Camisa ocre com cinco botões e renda verde nos ombros, gravata com dois laços e ponta reta centralizada até a metade do peito, saia cinza com suspensório. Meia bege canelada e sapatilhas pretas lustradas. Ainda colocou a boina verde, que já não fazia parte da sua época. O amante não aguentou de tanto rir. Foi a última gargalhada de sua vida antes de receber cinco golpes de tesoura. Tayla voltou a ficar presa ao uniforme. Desta vez, de presidiária.

Arrependeu-se, tardiamente, de ter comemorado a morte da madre Tereza anos atrás. Parece que, do inferno, ela lhe rogou uma praga: “Que vista uniforme pelo resto da sua vida!”.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
 Bookess - http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe -http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
 


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