terça-feira, 28 de julho de 2015

Saudades remotas


* Por Frei Betto


Velhos têm saudades remotas. Talvez não se lembrem onde deixaram os óculos ou em que gaveta guardaram a última conta de luz. São capazes, no entanto, de recordar a infância e o dia em que ganharam de presente um cavalinho de pau.

Quem sabe o próprio cérebro se retorce na direção do passado, como o último olhar do navegante desterrado de sua pátria. Sim, guardo na memória a foto de meus sapatos de solas de pneu, o uniforme escolar recendendo a sabão de coco, os cadernos e os livros disciplinadamente encapados com papel encerado.

Guardo saudades do milk-shake da lanchonete De Lucca, do picolé de chocolate da padaria Savassi, dos bondes a escorregarem pelos trilhos que teciam colares prateados pelas ruas arborizadas de Belo Horizonte.

Tiro da memória retalhos imateriais: o respeito às mulheres e aos idosos, a quem os mais jovens cediam assento nos transportes coletivos; a veneração aos professores, mestres em ampliar conhecimentos e impor disciplina; a reverência aos valores espirituais; os domingos de missa obrigatória.

Saudades de remar no lago do Parque Municipal, dos piqueniques à beira da lagoa da Pampulha, dos quintais a ensombrearem as casas desprotegidas do medo.

Sinto o sabor do refrigerante Guarapan; do doce de leite servido nas feiras em copinhos de sorvete; dos pastéis de nata; das balas de coco recortadas a tesoura; e até do que o paladar rejeitava, como a Emulsão Scott à base de óleo de fígado de bacalhau.

Saudades da infância despreocupada pelas ruas mal iluminadas, do matagal dos terrenos baldios, dos gibis e das figurinhas de coleção. Do trânsito desestressado, dos políticos que morriam pobres, dos trens revestidos de pujança e poesia.

Recordo os carnavais de rua ao ritmo de uma graciosidade que ainda não se transformara em espetáculo; as procissões com suas Verônicas sensuais a enxugar o rosto macerado de Jesus; os desfiles de 7 de setembro em que os militares eram aplaudidos, desarmados do estigma da ditadura.

De tanto sonhar com um futuro melhor, hoje me surpreendo acreditando que melhor foi o passado. Não havia crianças de rua, a escola pública era disputada pelas famílias abastadas, as drogas não ameaçavam, de terrorismo nem se falava.

Vivia-se em um mundo encantado, respirava-se ar saudável, havia decoro.

Ilusão ou era mesmo um mundo melhor? Não, naqueles tempos era inimaginável falar em proteção do meio ambiente, supor um presidente negro na Casa Branca ou um ex-metalúrgico no Alvorada. Não se concebia a Ásia e a África sem colônias europeias, nem a opinião pública indignada com trabalho escravo, desrespeito aos direitos humanos e políticos corruptos.

Em muitos aspectos a humanidade piorou: hoje está mais desigual, injusta e beligerante. Trabalha-se por dinheiro, não por ideal. A competitividade supera a solidariedade, assim como a estética corporal predomina sobre a ética espiritual. Há mais religiosidade e menos espiritualidade.

Contudo, prefiro guardar o pessimismo para dias melhores.

* Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.



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