domingo, 19 de julho de 2015

Há grãos de fartura em sua dor


* Por Eduardo Murta


O dedo à língua dosa a medida do tempero. Os três diante da água em borbolhas. Jantar quase pronto. Seis tiras de chuchu, sal a gosto e o complemento de costume: pedras. Nelas vão as marcas identificando. As com bolinha, para Nora. Cruz, para Juca. E rabisco imitando raio, para Ananias. Ninguém confundiria os pedregulhos de ninguém. Morninhos, encharcados, com o sal no ponto. Degustavam à exaustão, à última gota. Velando como cães zelam por suas recompensas.

Cardápio e semanas iam se repetindo como um fardo. Mas não fraquejavam na fé. Alguém, dia qualquer, olharia por eles. Feito o açougueiro que, às bordas do Natal, aceitara a dentadura de Ananias no contrapeso ao meio quilo de retalhos. Ou o dono do empório, que empenhara uma barra de sabão à troca do vira-latas Ossinho. Sem a desconfiança de que seria resgatado na travessia da madrugada, poucas luas depois.
Se apegara a ponto de, junto do grupo, dar a entender que tudo compreendia e de tudo partilhava. Levantava a cabeça todas as vezes em que um dos donos iniciava uma história. Ficava acomodado ao colo de Juca, ex-jogador de futebol, descrevendo as mulheres que conquistara. Lindas, amantes ardorosas, apaixonadas por vinhos nobres, carros estilosos e com um traço comum: a ingratidão. Piscava impaciente ao infortúnio detalhado de Nora, a atendente de pastelaria que caíra em desgraça ao crer no amor do pé-de-valsa que prometera casa, comida, roupa lavada, mas que não fora além da cama.

Seus seios de ex-rainha de lanchonete pulsando num rancor animal.
Era Ananias que empunhava as melhores representações. Tamborilava à pança, entalhava os gestos, como esculpindo ao vento, para repisar as mentiras calculadas de sempre. Que fora chefe de polícia, dos bravos, desbaratara quadrilhas, arrancara a máscara de falsários e elucidara crimes perfeitos. A cigana, maldita cigana, presa por roubo e sacrifício de gado, é que lhe rogara praga perversa. Ajustava o chapéu e afundava o calcanhar da galocha no chão batido para detalhar, quase bufando: ele condenado a vagar como um pedinte desamparado.

Mendigavam destino melhor. Cada um a seu modo. Nora de amores repartidos, a ponto de jamais ter identificado com exatidão o pai dos nove filhos. Todos sem nome, cuidadosamente abandonados às portas dos hospitais. Inda assim, não abria mão das noitadas de prazer. Ora com Juca, as unhas sujas tracejando os corpos, os cigarros catados ao chão emplumando a atmosfera. Ora com Ananias, voz empostada, lhe cantando tangos de Gardel. Letras paraguaias. Importava pouco. A ela, soava japonês.

Antes que o sono lhes tome aos ombros, ali, aos pés do elevado, Nora vai cumprir o ritual de guardiã. Confere as três pedras acomodadas ao caldeirão. O pacote de sal, data vencida, também está lá. Ela se volta ao único adorno do cercadinho sem teto, em contorno à pilastra. E reza àquela face misericordiosa, órbitas azuladas, ar angelical. Moldura sem vidro, o papel desbotando. Não sabia o nome do santo recolhido ao lixo. Nem saberia. É a ele quem pede que lhes ampare.

E é nele que pensa quando fecham um contrato para a colheita de feijão, num entorno de rodoviária. Direito a dois banhos por semana, colchonete e uma saca de paga ao final. Os três agora maravilhados com o mundaréu de favas à volta. Plantação a perder de vista. Mordem os grãos crus. Partem desembestados, campo adentro. Os lábios verdes, empapados de comer. Acabariam capturados na manhã seguinte.
E as bocas costuradas em castigo de arame fino, em meia à peãozada. Nora roga àqueles olhos azuis, generosos, que não lhes abandonasse. Que por eles zelasse. Súplica vã. Porque Frank Sinatra, onde estivesse, cuidaria tão-somente de empenhar-lhes uma canção em ré menor. Destas tristes, de acalanto, em solenes rituais de partida.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.


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