quarta-feira, 17 de junho de 2015

Também temos “As vinhas da ira”


* Por Urda Alice Klueger


Chove, hoje. Fico pensando onde eles estarão. Apesar de não ter viajado, ultimamente, sempre acabo andando um pouco por aí: vou a Itajaí, a Joinville, fui a Jaguaruna, todas as semanas vou até Florianópolis. Como podem ver, não tenho saído do Estado, mas não se precisa ir longe para encontrá-los: em todas as rotas eles estão, esses homens magros, barbados, cabelos por cortar, carregando na sua viagem o pouco ou o nada que têm. Eles andam a pé de uma cidade para outra, sujos e desgrenhados, e ninguém pensa em dar nem eles pensam em pedir carona, coisa que foi tão comum nos tempos da minha juventude, nos tempos em que a filosofia hippie tinha explodido pelo mundo, e andar de carona era a coisa mais natural possível.

A estes homens, ninguém dá carona, e, como já disse, nem eles se atrevem a pedir. Vão a pé – uns muito raros empurram ou puxam um carrinho com alguns miseráveis trastes – a maioria leva muito menos: coisas envolvidas num cobertor, ou uma ou duas sacolas de plástico onde ainda cabe o seu tanto de esperança. É o que lhes resta. E a cada um que encontro eu fico pensando atrás de que esperança que vão – por que estão indo para outra cidade?  Há quilômetros e quilômetros vazios entre uma cidade e outra – será que pensaram em levar água, alguma coisa de comer?  Onde dormirão quando a noite chega sem que a outra cidade chegue? E onde se abrigarão em dias de chuva, como hoje?

O fato é que há homens sem nada andando pelas beiras das estradas onde passam, velozmente, os carros importados, de luxo. Sempre são homens, nunca são mulheres. As mulheres deles ficaram em algum lugar, porque decerto têm crianças, e há que sobreviver nos tais lugares, e alimentar as crianças. Talvez sejam humilhadas em empregos sem dignidade. Talvez tenham que fazer coisas piores. Já não têm seus homens para protegê-las. E os homens já não têm nada. E caminham entre uma cidade e outra. E quando os vejo chegando perto de Blumenau, penso que talvez venham porque um certo padre, aqui, organizou cozinhas comunitárias para homens assim, onde é certo pelo menos, o prato de comida. Mas eles não andam só nesta direção. Andam em todas as direções. E estão sujos. E estão magros. E são homens.

Dentro deles vivem coisas iguais às que eu sinto, às que você sente: eles sonham com um futuro melhor, eles se lembram de um passado em algum lugar, eles têm saudade dos que já não sabem mais onde estão, eles têm necessidade de amor, de banho, de carinho, de comida. Imagino que, quando anoitece, dormem sob a proteção de pontos de ônibus que existem ao longo das rodovias – que pensarão dentro da sua solidão ladeada pelas luzes velozes dos carros de luxo? Provavelmente, sentirão fome; certamente, sentirão a falta de alguma mulher, sentirão desejos aos quais já não têm direito, porque um monstro chamado Capitalismo os castrou de alma e de corpo e os tornou escória, lhes tirou todos os direitos além do direito de serem desprezados.

Alguém de vocês que passa pelas rodovias nos seus carros de luxo ou não já se perguntou quem são aqueles homens sem mulher e sem bagagem que caminham em todas as   direções, bem aqui no dito rico (?) e sem problemas estado de Santa Catarina? Alguém já parou e lhes perguntou os nomes, ou de onde eram, ou se queriam alguma coisa? Aposto que não. A polícia deve pará-los, às vezes, com certeza, para se certificar que não são bandidos. Eles já não têm forças nem energia para serem bandidos. Talvez já não consigam mais nem roubar um pão, o que seria justo para quem têm fome.

E revistas e jornais ficam falando maravilhas de Santa Catarina, dizendo que é o próprio paraíso terrestre. E muitos catarinenses estão convencidos de que o mundo gira em torno do seu umbigo. Mas os homens sem nada continuam caminhando. Em todas as direções. E não poderão continuar caminhando sempre. Um dia eles acabarão fazendo valer os seus direitos de seres humanos. Por enquanto, ninguém se importa. Mas neste dia de chuva, estou aqui, preocupada a respeito deles. Onde se esconderão em dias assim?

Blumenau, 26 de setembro de 2003.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).

Um comentário:

  1. Os mais sensíveis veem, sentem compaixão e o pensamento já lhe foge. Ler um texto como este é como se nos fosse esfregada na cara a dor do outro, em nós, gente tão indiferente.

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