sexta-feira, 26 de junho de 2015

Machado para todas as idades


* Por Urariano Mota

No ano da graça de 2008, a capa da revista Nova Escola, da editora Abril, anunciou o mesmo título destas linhas. E para deixar mais claro a quem se destinava, acrescentou na mesma capa: “No ano dedicado ao nosso maior escritor, saiba como trabalhar seus clássicos textos literários com alunos a partir do 3º ano”.

Ainda que vacinado contra os enganos da imprensa Abril, não pude resistir à curiosidade. Quem sabe?, eu me dizia, para de ser casmurro, quem sabe?, um órgão da Fundação Victor Civita, destinado a quem educa, pode ter autonomia, ser uma boa descoberta, porque afinal a Nova Escola não é o mesmo que a revista Veja. E depois, a intenção era nobre: tratava-se de Machado, para todas as idades. E fui conhecer, e aprender, de novo.

Dentro da revista, o título da matéria era mais fino e esperançoso. Se não conseguiram o que anunciavam, isso era outra história, mas sabiam dar um título: “Machado, um clássico para todos”. Coisa bela. Um antegozo tomava conta da gente. Os prolegômenos das orientações práticas aos mestres, como garçons que dispunham a mesa com acepipes ou salgadinhos, eram ótimos. Como nesta citação da escritora Ana Maria Machado, prêmio internacional Andersen no ano 2000: “Tentar criar o gosto pelos livros por meio de um sistema de forçar a ler só para fazer uma prova é uma maneira infalível de despertar o horror nos estudantes”.

Tais citações faziam a gente passar por cima, como irrelevantes, algumas grosseiras simplificações no resumo biográfico de Machado: que ele descendia de um “negro e uma portuguesa”, que era “igualmente admirado pela corte e pelo povo”... Adiante. Queriamos saber como apresentar as obras de Machado de Assis aos estudantes.

Quisemos. Queríamos. Quereríamos. Muito. Mas entre o querer e o ser o mundo não é a vontade e sua representação. O pessimismo do bruxo é outro. Logo em um intertítulo da matéria – Contos para pequenos – o espírito de Machado era expulso: “Nos ciclos iniciais, o ideal é começar a trabalhar Machado pelos contos, compreensíveis por leitores de qualquer idade e com uma história bem próxima da realidade infantil”. O leitor leu o que entendeu. Isto: os contos são mais simples que os romances. Claro, nessa definição não cabem Uns braços, Noite de Almirante, Missa do Galo, por exemplo, porque neles a idade e realidade dos personagens não são mais crianças. Mas cabem Conto de Escola e Um Apólogo, porque são contos (narrações “mais simples”, digo) e porque são mais próximos da realidade infantil. Se Machado de Assis fosse vivo, poderia pontuar tais explicativas com uma enxurrada de pontos de exclamação, à semelhança das reticências que pôs no título do capítulo 53 das Memórias Póstumas de Brás Cubas: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! .

Ora, dava vontade de gritar, mais que escrever: contos não são mais simples que romances; contos podem ser tão complexos quanto romances; a extensão de uma narrativa não é o seu número de linhas; a extensão do que se lê é a duração na alma do leitor; pelo peso, volume e número de linhas, qualquer catálogo telefônico é mais complexo que Missa do Galo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Mas gritar é mais próprio de um ser em desespero que de um que espera. Quem sabe se na condução prática de apresentar o Machado “pequeno” não surgissem luzes? Para crianças do 3º ao 5º ano, o Conto de Escola era assim apresentado: “...As antíteses e os paradoxos permitem levantar uma série de discussões em sala de aula. Um dos objetivos dessa leitura é a distinção entre conto e outros gêneros, como apólogo, fábula e lenda”. Exclamação primeira: em Conto de Escola o que menos importa são as antíteses e os paradoxos! Exclamação segunda: se é que as antíteses e paradoxos importam!! Exclamação terceira: o conto, como gênero, não é diferente do apólogo, fábula ou lenda!!! Exclamação quarta: nesse destaque há mais que uma pedagogia burra: há uma ignorância colossal, aliada ao desamor pela pessoa humana!!!!

Mas não devíamos perder a esperança. Fomos à seqüência didática para Um Apólogo, que não é um conto, já se viu, mas estava indicado para estudantes do 4º. e do 5º. ano.

“Material necessário

- Cópias de Um Apólogo para todos
- Livros e sites de História sobre o Rio de Janeiro do século 19
- Caixa de costura com agulha, linha e alfinete e um pedaço de tecido”.

Vocês leram o que entenderam: “caixa de costura com agulha, linha e alfinete e um pedaço de tecido”. Isso porque, no apólogo, dialogam uma agulha e uma linha, mais a reflexão de um alfinete! Imaginem como seria a leitura das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Cenário de caixões de defunto, funerárias, cemitérios, com pedras tumulares trazidas para dentro da sala de aula. Vozes do além, esqueletos, e vermes, melhor, só um, o primeiro deles em uma corrida, porque a ele se dedicam as memórias póstumas! É bem possível que tal criatividade tenha sido já executada em aulas mais avançadas nos colégios que se orientam pela revista Nova Escola..

Mas não nos percamos. Em Um Apólogo, a função da caixa de costura ficava mais clara na 3ª. etapa do que se recomendava aos mestres : “... Deixe a caixa de costura à vista. Pergunte às crianças se elas sabem quem serão os personagens da história. Dobre o tecido, prenda-o com o alfinete, enfie a linha na agulha e costure...”. Isso queria dizer: a redução dos elementos de um ...conto, apólogo!, ao acessório. Um amesquinhamento, portanto, do universo da narrativa. Isso quer dizer, portanto, a expulsão da moral, da ética, para em seu lugar existirem agulhas – estão vendo a agulha? -, a linha – estão vendo a linha? -, o alfinete – veem o alfinete? Pior, devemos ser justos, a moral que se destacava aparecia na 6ª etapa da sequência didática: “O alfinete é o porta-voz da moral da história.

Discuta sobre ela com os estudantes: existem pessoas que ajudam outras, abrindo caminhos. Mas, conquistada uma vitória, quem se beneficia é aquela que foi ajudada. Pergunte o que eles pensam sobre isso”. Que pedagogia! O que se ensinava a pretexto de Machado?! Ora, convenhamos: não foi para formar monstrinhos de egoísmo que o gênio da literatura escreveu Um Apólogo. Pelo contrário, ele condena tal comportamento, pela revolta que acende na gente contra a linha. Ele próprio, na vida real, biográfica, foi linha agradecida à agulha Manuel Antonio de Almeida, que lhe deu ajuda, quando Machado era aprendiz de tipógrafo. Não seria essa a moral – no sentido pedagógico, construtora de caráter de pessoas – que poderia ser relacionada ao Apólogo? Não, porque moral se confunde a lições de moralismo em tal pedagogia. Duvidam? Eis o que veio como uma proposta: “um debate sobre quem era mais importante: a linha ou a agulha”.

Então chegamos ao ápice, se é que alguma vez estivemos a meio caminho de. Para os alunos do 9º ano levava-se o romance Dom Casmurro. Prometo ser imparcial e mudo como uma porta ou uma parede. Apenas transcrever. Por isso vamos à sequência didática de trabalho para o livro:

“OBJETIVO – Ampliação da capacidade de análise literária. CONTEÚDO – Análise do foco narrativo. TEMPO ESTIMADO – Cinco aulas. ...2ª ETAPA – Os estudantes devem terminar a leitura do livro, se possível, sozinhos....”.

Mas devo logo terminar o pacto. Antes da penetração do mérito, passemos ao largo do Objetivo, que em vez de formar leitores, em lugar de acordar a paixão pela vida dos romances, objetiva reproduzir em meninos os vícios dos adultos de Letras. Esqueçamos que não se lê um romance para se fazer “análise literária”, ou ampliar tal análise em... esqueçamos. Percamos de vista ainda o Conteúdo de uma “análise do foco narrativo”, essa coisa pomposa e purgativa, que espalha o contágio de bactéria vomitória. Mas não podemos deixar de nos deter em Dom Casmurro para o tempo estimado de 5 aulas. Nem, muito menos, para a meta de alunos terminarem a leitura desse livro sozinhos. Há um erro de raiz, que derruba e põe por terra as melhores intenções do Machado clássico para todos.

Deus e o Diabo sabem, a experiência e os anos de erros confirmam: o Machado de Assis maduro não é compreendido pelos anos imaturos. Observem que o Dom Casmurro, para as turmas do 9º ano, passava a ser distribuído entre jovens de idades em torno de 15 anos. Imaginem como as digressões, chistes, circunlóquios, paráfrases, paródias, ironias, metáforas, inversões podiam ser compreendidas por meninos e meninas em cinco aulas. Ora, cinco. Multipliquem-nas por vinte. Imaginem mais. Como pode uma criança cheia de vigor e alegria, entender algo como

“- Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos: nós roemos.... Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos, fosse ainda um modo de roer o roído”?

A narrativa em Dom Casmurro é com frequência e fartura suspensa para digressões, cutiladas, venenos, pragas e piscar malicioso de olhos que só o tempo amadurecido responderá. Que são uma graça, um grato humor, um espírito que não se conhece até hoje igual em língua portuguesa. “Antes lhe pagasse a lepra”, o narrador fala em relação ao filho Ezequiel, que desconfiava ser do amigo Escobar. Para completar no capítulo seguinte: “Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifóide...”. Note-se que o problema não é só de forma, de linguagem, dos dribles, firulas e recursos de linguagem, é da visão de mundo enformada nessa prosa. A sua persona mais usual, como narrador, é a de um homem cético, cruel, fino e zombeteiro. Como se lembrasse, aqui e ali, “meninos, eu conheço, eu sei aonde vai dar essa estrada”.

Daí que na impossibilidade de uma compreensão plena, a leitura nas idades primeiras se faça aos saltos ou às cegas. Daí que as intenções, na aparência mais pedagógicas, reduzam a complexidade de uma prosa livre e liberta às linhas exteriores da trama. Como se escrevia na revista, abaixo do intertítulo Romances para os jovens : “No 7º, é viável começar a trabalhar com as grandes histórias de Machado. Um dos títulos que se encaixa bem nessa faixa etária é Dom Casmurro. O enredo gira em torno de Bentinho, um jovem aristocrata carioca, que desconfia que a mulher, Capitu, cometeu adultério”. E relatava uma experiência, que deve ser modelar na apresentação do clássico Machado aos jovens:

“Então uma grande discussão em aula foi armada. Cada um tinha de contar um pouco do que tinha entendido e adotar uma posição: Capitu traiu ou não? Para defender a ‘sentença’, era necessário dar exemplos. ‘Alguns se exaltavam e sustentavam sua teoria com muito furor’”.

O que era, guardadas as proporções, um novo conto do bruxo, do mestre em mostrar o ridículo e o risível. Um conto, quem sabe, com o título de Machado para todos. De enredo bem literal: cabeças duras cortadas pela pedagogia cujo nome real era outro machado, um substantivo comum para emburrecer jovens.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
  

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