quarta-feira, 17 de junho de 2015

Ebulição


* Por Mara Narciso


O menino é engraçadinho, pele clara, cabelos anelados, jeito de anjinho, mas só o jeito. Em todos os lugares aonde chega, embora tenha três anos, causa estranheza e sustos sequenciais. Naturalmente surge sentimento de rejeição em quem está perto. A antipatia atinge crianças e adultos. Ainda que corra de um lado ao outro com carinha sorridente, com extroversão e falta de censura próprios da idade, vai perturbando o ambiente e angariando sentimentos negativos. A velocidade da sua movimentação preocupa. A destruição que acarreta desaponta. Quem pode, tira seus pertences da frente, num gesto de proteger o que é seu. O natural é reparar a anormalidade acelerada e sem lógica, avançando em cima de tudo que encontra, quebrando, jogando no chão, numa interminável corrida ao impossível, indo e voltando sem parar.

Uma passada de olhos capta o cansaço da mãe, que, no mesmo ritmo do filho procura acompanhá-lo, cercando seus desatinos, segurando de cá, pegando no colo acolá, numa manifestação de eterno segundo lugar, pois jamais chegará antes dele. Algumas vezes chega junto. Poucos entenderão a sua luta, mesmo que compreendam que a criança tem um problema de comportamento. Raros haverão de se solidarizar. A maioria lançará pedras em direção à mãe, acusando-a de não conseguir controlar a amplidão de movimentos do filho, um corredor atípico.

Cai e se machuca de instante em instante, pelo exagero dos passos acelerados e maiores do que as pernas. Por isso mesmo desaba. Bate a cabeça nas quinas, em curto espaço de tempo. Desconhece os desníveis e perigos de cair num buraco ou numa escada. As mãos se agitam no ar, antes mesmo de alcançar o objetivo que ele nem sabe qual será. A curiosidade é do tamanho do mundo e o medo inexiste. Avança velozmente sobre tudo, numa ânsia inexplicável de experimentar a vida instantaneamente, antes que alguém o segure e o impeça de perceber com a ponta dos dedos. A sua maneira de viver em alta velocidade gera uma aventura alucinante. Para ele e sua mãe.

Pegar algo para abandoná-lo no momento seguinte, como se a conquista fosse primordial, e mantê-la, dispensável. Assim se dá a desconstrução do local em que está. Há sempre coisas para conhecer nesse mundo grande. Então, vai enlarguecendo suas fronteiras, querendo outra coisa adiante. Age como um conquistador dos sete mares, que deseja ter algo, mas tendo-o já não o quer mais e o abandona para seguir viagem. Olhando um menino assim, fica-se a imaginar o que se passa em sua mente, e como são seus pensamentos. Devem ser tão rápidos quanto a sua ação exteriorizada, e se não for muito bem olhado se acidenta grave. Até morre. Precisa ter sua mão agarrada o tempo todo.

Quando vai crescendo, e perde a graça, os poucos que lhe eram condescendentes abandonam essa postura e receitam pancada. Alguns se atrevem a sugerir esta ou aquela atitude, criticando a mãe por não bater o suficiente para domá-lo. São ingênuas e inúteis ideias. Tal menino é indomável. A medicina fala que ele tem TDAH, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, caracterizado por déficit de atenção, impulsividade e hiperatividade. Há setores da Psiquiatria que negam a sua existência, e afirmam tratar-se de criação de Indústria Farmacêutica, que, de forma imoral quer vender Ritalina (metilfenidato). Provam que isso não existe nem no Japão e nem na França. Contestada ou não, a correria perdura até entrar e avançar na puberdade. Os problemas sociais e as perdas pessoais continuam. O fracasso escolar é a norma.

Uma mulher me contou que o filho de dez anos apanhava do pai, que fazer dever era uma tortura, que na escola não escrevia nada, mas que nas provas orais tirava boa nota. Caminhava o tempo todo e mal conseguia ficar na sala de aulas. Era hostilizado pelos colegas que o provocavam, e ele revidava, chegando machucado em casa. A inteligência era acima da média, e sofria muito com os apelidos de burro, de doido, e outros. Que eu não poderia imaginar o sofrimento que era aquilo.

Engana-se. Eu sei o que é isso. Trago duas histórias, a minha experiência como mãe de filho hiperativo, que hoje tem 31 anos de idade, descrita inicialmente, e a outra. Quem não acredita nessa doença inventada para vender remédio, que traga uma solução. Eu encontrei um caminho conhecendo, amando, cuidando, compreendendo, segurando a mão, levantando bandeiras, alertando, mostrando aos outros a minha experiência. O tratamento começou aos dois anos de idade e dura até hoje. Ter um filho hiperativo é como receber uma bomba a ser detonada num momento incerto. Há tempo de gritar e se descabelar, mas o custo e o cansaço compensam.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



2 comentários:

  1. Sensacional a sua crônica/depoimento, Mara. Tudo de bom para você e o Fernando!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não é fácil, mas vamos garbosamente singrando os mares das descobertas e das quebradas de cara. Obrigada, Marcelo.

      Excluir