quarta-feira, 17 de junho de 2015

Devaneios de uma roqueira 4

* Por Fernando Yanmar Narciso


CAPÍTULO 2 (PARTE 1/3)


-Muito bem, molecada! Vamos às Bachianas?

Nem acredito que meu cérebro conseguiu formular essa frase! Ou que ainda me lembrava de como entoar Villa-Lobos com tanta coisa chacoalhando em minha mente. Me entupiram de gole e de uma droga que é melhor eu nem saber qual foi, aproveitaram-se de minha fragilidade momentânea pra me tatuar e afanar meu dinheiro, provavelmente abusaram de meu corpo em coma alcoólico por horas e depois me largaram pelada lá no posto.

Tenho que reconhecer, I’m hard as nails! Tive rastejar por um tempão debaixo do inesperado sol quente com o estojo de violão me ralando as costas ardidas. Sorte que faz muito tempo que não corto o beloso, assim foi relativamente fácil esconder esse monstrengo no trabalho... Um motorista de van me achou quase desmaiando no asfalto e terminou de me levar até a cidade.

São Modesto, nosso estimado viveiro de urubus...Dois quilômetros de uma ladeira que parece nunca acabar, prédios e casebres tão antigos que dá pra atravessar as paredes com um lápis, um doce perfume de estrume de cavalo e abandono que dá pra sentir lá do posto e uns 5000 habitantes que não fazem ideia de por que vieram nascer justo aqui!
- Pode encostar ali na obra da prefeitura, moço. - Disse ao perueiro com os olhos injetados e a tattoo me ralando o couro das costas contra o banco. Acho que vou dormir de bruços o resto do ano! Não me levem a mal, não tenho problema algum com tattoos, desde que eu esteja sóbria o bastante pra pagar por elas!

Tenho um morcego no braço direito, uma letra N de Nirvana no tríceps esquerdo e uma roseira com caveiras na coxa esquerda. Por essas eu paguei com gana e gosto. Vai saber o que me passou pela cabeça na farra de sábado? Posso ter dito pro bandido something like ‘Tá bom, pode me agulhar, mas faz pelo menos uma coisinha discreta!’, mas artista não se aguenta de vontade de mostrar a que veio, né?
- Tá entregue, moça.
- Brigada, moço. Aqui tem um, dois, três...
- Pode deixar, anjo- Ele recusa minha oferta- Mulher nenhuma gasta dinheiro comigo por perto,especialmente quando esbanja saúde, assim que nem ‘ocê’!

Babaca...

E lá estava o casarão decadente do conservatório, e como não podia deixar de ser, meu ex, Ulysses, estava lá na porta também, com aquela jamanta antiga dele. Mas o carro agora era lilás. Weird, podia jurar que semana passada era em degradê verde e roxo... Eu vivia reclamando que cada trocado que Uli ganha acaba virando um adorno novo praquela lata velha.

Ele e o já folclórico o golpe da garrafa de vinho, partindo pra cima de outro otário. Desde que a gente se conheceu ele tenta passar adiante esse ‘Brunello raríssimo, de 150 anos’. Pra não perder o costume, o ‘quase freguês’ lhe estalou um bofetão na cara e foi embora, praguejando. Se Kurt Cobain lá no inferno fosse clemente, ele não permitiria que Ulysses me visse...
- Lexi, Lexi, Lexi!- E lá veio ele. Kurt, seu traidor!- Quais são as novas, Vermelha?
- Faltava mais nada... Com tudo que já me aconteceu, e a última pessoa que eu precisava ver vem se engraçar pra cima de mim...
- Ih, que é isso, mina? Isso lá é jeito de falar comigo, seu ex? Vamo discutir o assunto ‘mió’, Lexi...

Já veio tentando me passar o braço por trás da nuca feito um bebum carente no fim da madrugada. Não sei se era a fumaça do cachimbo dele ou aqueles dreads enormes e imundos, mas o cheiro que ele exalava era tão forte que é como se eu tivesse mergulhado de barriga numa caçamba cheia de erva.
- Papo reto, Ulysses- Recuperei a pose de lady, antes que o charme rastafári e o sorriso irresistível dele acabassem por me sequestrar outra vez.- Tive um FDS horrível, fui roubada, mutilada, mal tô me ‘guentando em pé, faltam só cinco minutos pra eu começar a aula e a última coisa que eu preciso hoje é de cheiro de baseado me impregnando a roupa antes de trabalhar. Então, VAZA!

Bati com o calcanhar do tamanco no chão com tanta força que Ulisses quase subiu no poste num pulo de gato. Não gosto de tratar ninguém assim, mas hoje simplesmente não dava pra ser de outro jeito.

(CONTINUA...)

* Escritor e designer gráfico. Contatos:
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