segunda-feira, 22 de junho de 2015

Das imprecisões do prisma


* Por Daniel Santos


A moça do censo anotou: “pardo”. Pardo, porque não era branco e, para não desagradar a mãe, evitou registrar “negro”. E ficou pardo mesmo, um lindo pardinho de olhos buliçosos como à procura de uma definição.

Mas logo corria pela vila, empinava pipas e referiam-se a ele como “pretinho”, um pretinho serelepe sem outro igual, se bem alguns dissessem “neguinho” com o azedume de um preconceito mal e mal disfarçado.

E cresceu mais, colou grau, mas, ao se candidatar a um emprego, ouviu do empregador que ali não se aceitavam “crioulos”, o que muito o humilhou, quase o tirou do sério. Ao insistir na vaga, ouviu “sai, tição!”

Felizmente, para compensar tanta tragédia, arranjou namorada, uma moça de boa índole, bem-intencionada e muito criteriosa com as palavras. Para evitar magoá-lo com referências étnicas, chamava-o “moreno”.

O namoro foi adiante, e numa noite em que os dois celebravam a carne, ela gemeu “ai, negão!, ai, negão!” Quase em crise cromática, salvou-se no orgasmo: um desmaio multicor tingiu-o de arco-íris!

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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