segunda-feira, 25 de maio de 2015

Cobrança


* Por Daniel Santos


Fui de ônibus ao centro da cidade quitar o crediário que eternizava uma sujeição financeira demais humilhante para mim. Durante a viagem, só pensava em reagir, mas ouvi, então, uma discreta risadinha de escárnio.

Era como se um crítico oculto se divertisse com minha insurgência; para ele, na certa, um arroubo infantil de quem ainda não entendera: nascemos já endividados e só fazemos pagar até a inevitável falência.

Rilhei os dentes e veio a segunda risada, desta vez mais próxima. Seria o sujeito a meu lado? Não, não. Ele me pareceu sisudo e, com aquele guarda-chuva de cabo de bambu, imaginava-o conservador, confiável.

Mas mantive-me atento, porque percebi no canto de seus lábios o cós mal-alinhavado de um sorriso irônico, um sorriso de  quem adivinhava meus pensamentos, embora sem se identificar nas risadinhas seguintes.

Isso só aumentou minha irritação e o desejo de interromper aquela cobrança viciosa. Ao saltar do ônibus, enraivecido, pronto a xingar, ouvi a gargalhada mais sinistra e – que jeito! – corri a entregar tudo ao banco.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




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