domingo, 17 de maio de 2015

A polêmica musa de Shakespeare

Os poetas (alguns) não raro elegem uma “musa” específica, para eles especialíssima, uma mulher que dão a entender que seja o suprassumo da perfeição e da beleza da cabeça aos pés, à qual dedicam parte ou, em casos extremos, até a totalidade dos poemas que compõem ao longo da vida. Nem é preciso pensar muito para lembrar exemplos desse procedimento. Cito, de memória, os casos dos clássicos da arte poética como Torquato de Tasso (Leonor), Horácio (Lívia), Dante Alighieri (Beatriz), Luís de Camões (Catarina), Ovídio (Corina), Propércio (Cíntia), Catulo (Lésbia), Tíbulo (Délia) e vai por aí afora. Algumas dessas mulheres inspiradoras e apaixonantes de fato existiram (posto que, óbvio, sem as virtudes que seus delirantes amantes lhes atribuem). Outras tantas (a maioria?), todavia, são meras fantasias, produtos de imaginação febril que raia ao delírio à procura de uma paixão concreta, posto que ideal.

Até poetas menores (entre os quais me incluo), elegem suas musas (quando elas de fato existem) ou “constroem-nas”, quando frutos da fantasia. Alguns revelam seus nomes, que repetem, poema após poema. Outros conservam o mistério, declinando, apenas, as características que lhes agradam ou que supõem (ou desejam) que elas tenham. No meu caso, para não ficar em cima do muro, nomeio minha inspiradora apenas como “Doce amada”. Outros poetas, porém, não dão nem mesmo essa vaga indicação, criando um clima de mistério que não raro permanece insolúvel para sempre. Neste último caso, está o mito William Shakespeare.

O bardo inglês dedica 27 sonetos, dos 154 que integram seu precioso livro, publicado em 1609, a uma misteriosa mulher que, literalmente há séculos divide as opiniões dos apreciadores e estudiosos da obra shakespeariana. Essa figura enigmática é conhecida nos meios literários como “Dark Lady”. Para uns, trata-se de mulher morena, provavelmente mediterrânea, talvez espanhola ou italiana, quem sabe. Da minha parte, descarto essa possibilidade. Baseado na descrição que Shakespeare fez dela no soneto 130, concluo que se trata de uma africana, uma negra que prendeu seu coração (caso não se trate, claro, de personagem, ou seja, de fruto de sua imaginação). O que me leva a essa conclusão? Simples. Os dois últimos versos da primeira estrofe: “ (,,,) Se neve é branca, é escura a sua cor;/ E a cabeleira ao arame é igual (...)”.

Essa mulher existiu ou foi uma das tantas personagens que Shakespeare inventou? E, se existiu, quem foi? Ressalte-se que os sonetos que lhe dedicou não revelam um amor platônico, romântico, etéreo como os poetas costumam fazer com suas musas. Alguns (a maioria) chegam a divinizá-las, a considerá-las puríssimas e angelicais, de tal sorte que não podem ser tocadas por mãos profanas e que, o simples fato de desejá-las carnalmente, se constitui em imperdoável sacrilégio. Não foi o caso de Shakespeare nos 27 sonetos dedicados à “Dark Lady”. Neles, o autor escancara que se trata de um amor animal, físico, orgânico, carnal, claramente sexual, no que difere de todas as composições anteriores do seu livro. O poeta não queria “adorar” aquela mulher. Queria fazer sexo com ela.

Segundo alguns (baseados em não sei o que), a tal dama negra (ou morena como muitos querem) seria casada e trairia tanto o marido, quanto o amante, no caso o poeta. Mas... existiu? E em caso afirmativo, quem era? Há hipóteses e especulações em profusão, tanto em um sentido, quanto em outro, e que rendem acalorados debates, além de inúmeros comentários que eu talvez também faça na sequência. Há quem jure, por exemplo, que se tratava de Mary Fitton, dama de honra da rainha Elizabeth I. Outros asseguram que se tratava da poetisa Emilia Lanier. Mas há uma dificuldade intransponível nesses dois casos. Ambas as mulheres eram brancas como a neve. Não correspondiam, portanto, à descrição da referida dama morena.

Vejam como Shakespeare trata sua musa nesta bela composição (com tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos) e tirem suas próprias conclusões, caso seja possível:

Soneto CXXVII

“Não era a cor morena outrora achada bela,
Ou então de beleza o nome não possuía;
Mas da beleza a justa herdeira agora é ela,
Pois degrada a beleza infame bastardia.

Porque se a mão usurpa os dons da natureza
E alinda o feio ao dar-lhe aspecto enganador,
Perdeu-se o nome e o templo amável da beleza,
Que vive profanada ou mesmo em desfavor.

Mas cabeleira cor de corvo tem a amada
E olhos que estão de luto e como que a chorar
As falsas belas que de belas não têm nada,
Pois suprem a criação com mentiroso ar;

E eles, chorando, tanto enfeitam sua agrura,
Que deveria ser assim a formosura”.

Shakespeare admite, à certa altura, que a mulher que lhe virou a cabeça poderia não ser considerada bela para muita gente, talvez para a maioria. Admitiu ser provável que muitos a achassem feia. Mas enfatizou que sua musa tinha encantos insuspeitados que aos seus olhos faziam-na desejável, a ponto de despertar-lhe profunda excitação, incontrolável desejo de possuí-la sexualmente. É o que depreendo dos seguintes versos, traduzidos pela recém-falecida crítica teatral Bárbara Heliodora, umas das maiores especialistas mundiais da obra shakespeariana:

SONETO CXXX

“Vermelha e branca é a rosa adamascada
Mas tal rosa sua face não iguala;
E há fragrância bem mais delicada
Do que a do ar que minha amante exala.

Muito gosto de ouvi-la, mesmo quando
Na música há melhor diapasão;
Nunca vi uma deusa deslizando
Mas minha amada caminha no chão.

Mas juro que esse amor me é mais caro
Que qualquer outra à qual eu a comparo”.

Quem, afinal de contas, foi a tal “Dark Lady”? Foi mulher de carne e osso, amante de Shakespeare, com a qual o poeta e dramaturgo traiu a esposa? Foi a tal poetisa? Foi a dama de honra da rainha Elizabeth I? Foi alguma prostituta londrina, como muitos sugerem e até tentam provar? Ou não foi nada disso, mas somente personagem de ficção, que nunca existiu na vida real, cuja tonalidade de pele não deve ser entendida literalmente senão como representação do desejo pecaminoso da luxúria, oposta ao amor platônico ideal associado com o "Fair Youth"? Façam suas apostas senhores.

Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. Intrigantes especulações. Por rara naquelas paragens, suponho ser uma mulher negra, que pode ter existido, mas não necessariamente ter sido amante dele, o que é apenas mais uma suposição.

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