domingo, 31 de maio de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos, dois meses e um dia de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – O que documentos revelam sobre Shakespeare.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “É preciso cobrar”.

Coluna Direto do Arquivo – Ronaldo Bressane, trecho de livro, “Sol”.

Coluna Clássicos – Arthur Rimbaud, poema, “Ofélia”.

Coluna Porta Aberta – Eliane Brum, crônica, “Como o Super-Homem vai trocar o collant?”.

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freire, crônica, “O apurinã que dá bolo em desembargador”.

@@@

Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.




O que documentos revelam sobre Shakespeare


O resgate da vida amorosa de William Shakespeare, com base em documentos minimamente confiáveis, é impossível. Por que? Porque estes não existem. Portanto, tudo o que escrevem a esse respeito – e escrevem demais – não passa de um conjunto de especulações, de chutes, de palpites, de conjecturas, de fantasias e de tentativas de conseguir notoriedade às custas alheias inventando escandalosas peripécias. A maior parte dos artigos, ensaios e mesmo livros a esse propósito baseia-se em interpretações equivocadas e distorcidas da obra do poeta e dramaturgo. Fundamentados, tão somente, em bases tão instáveis, voláteis e nada esclarecedoras, saem propalando por aí que Shakespeare teve relação homossexual com um nobre, que foi amante de sicrana, fulana e beltrana, que traiu “x”, “y” e “z” e que foi traído por Johns, Harrys e Smiths. Detesto esse tipo de especulação que nada constrói ou acrescenta de positivo.

Sobre a vida afetiva de Shakespeare se pode afirmar, com certeza, que ele casou, com 18 anos de idade, em 1582, com Anne Hathaway, mulher oito anos mais velha do que ele e grávida de três meses. Certamente, foi obrigado a casar, dado o costume da época, quando não se admitia sexo fora do casamento. Claro que havia muita hipocrisia a esse propósito, mas... Só não se sabe se o “errado” nessa questão foi o adolescente, com a testosterona fervilhando em seu corpo ou se a mulher, fogosa e experiente, foi quem viu a oportunidade de entrar para a família de um empresário local, relativamente próspero, já que o pai de Shakespeare era fabricante de luvas em Stratford-upon-Avon, o que naquela cidadezinha interiorana não era pouca coisa.

A criança concebida, ao que tudo indica, de maneira “acidental”, e que precipitou a união conjugal dos pais, foi uma menina, que recebeu o nome de Suzanne e que nasceu no início de 1583. Isso se pode afirmar com segurança, porquanto está documentado. Outro episódio de sua vida afetiva que pode ser comprovado foi o nascimento, em janeiro de 1585, de gêmeos, batizados como Hammet e Judith. Não há, todavia, nenhum registro que indique se Shakespeare e Anne viviam um casamento harmonioso e feliz ou se apenas se toleravam e mantinham as aparências. Não descarto a possibilidade do dramaturgo “pular a cerca” um montão de vezes, sobretudo após sua chegada a Londres. Todavia... prova disso, que seja minimamente confiável, não há nenhuma.

Pode-se conjeturar a respeito, dado o ambiente em que o dramaturgo atuava. Ele deve ter tido lá um punhado de casos com atrizes, colegas de palco, ou com prostituas londrinas. Isso, no entanto, é mera presunção, embora muitos (e põe muitos nisso) dêem essa possibilidade (a que qualquer homem saudável está sujeito) como “favas contadas”. Alguns mencionam até nomes, provavelmente saídos de suas maliciosas cabeças. Um último fato comprovado por documentos, referente à família de Shakespeare, é o da morte de Hammet, seu único filho homem, ocorrida em agosto de 1596, aos onze anos de idade, de causas desconhecidas. A afirmação de que a “causa mortis” teria sido a peste bubônica pode até ter base lógica, porquanto a Inglaterra enfrentava epidemia da doença na ocasião, mas isso não consta em nenhum documento. É, portanto, mero chute. Pode ter morrido, realmente, dessa causa, como pode não. Vá se saber! A vida das pessoas corriam toda a espécie de riscos naqueles tempos em que a medicina mal merecia esse nome e as noções de higiene eram pífias, se não inexistentes.

Sabe-se que, quando o filho morreu, Shakespeare não estava ao lado de Anne. Enquanto esta permanecia em Stratford-upon-Avon, ele estava em Londres, atuando como ator. Já gozava, inclusive, de algum prestígio no mundo teatral. Contudo, há alguma prova disso? Nesse caso, há. Sobreviveu, ao tempo e ao esquecimento, um panfleto, assinado por um certo Robert Greene, sobre a atuação de Shakespeare nos palcos. Aliás, esse crítico não simpatizava nem um pouco com o dramaturgo, a julgar por uma crítica específica que escreveu no leito de morte e que também sobreviveu intacta até os dias de hoje. No texto, Greene chama, em certo trecho, o ator de “corvo arrogante”, o que nos leva a deduzir o óbvio. Que não simpatizava nana, nada com Shakespeare, embora não revelasse os motivos de tal antipatia. Deveria ter, certamente, suas razões. Mas quais?

Shakespeare tomou conhecimento dessa crítica apenas após a morte de Greene. Ficou furioso com ela. Tanto, que exigiu, da parte do editor desse texto, Henry Chettle, a devida retratação, e com o devido pedido de desculpas, o que conseguiu. Isso também pode ser comprovado por documentos. Só não se sabe, pois Greene não escreveu em lugar nenhum, o motivo dele detestar tanto o dramaturgo e de considerá-lo “corvo arrogante”. Não faltam, porém, especulações de que essa ojeriza se deveria à suposta vida dissoluta e desregrada de Shakespeare, que colecionaria uma penca de amantes, sem se importar de que sexo fossem. Isso, eu não escreveria jamais, mesmo que fosse verdade. É um conjunto de escandalosas conjecturas de que um sujeito responsável e sério jamais lançaria mão.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk             

É preciso cobrar

  

* Por Pedro J. Bondaczuk



Os meios de comunicação – jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão e portais da Internet – tratam da questão da violência urbana e, principalmente, da criminalidade, com a competência que deles se espera? Esta é uma pergunta que ouço com freqüência, em palestras que dou para estudantes, e nos variados eventos de que participo, quando descobrem que sou jornalista. Outras indagações do gênero são acrescentadas, como: a imprensa presta à sociedade, com a abordagem que dá ao tema, o serviço que dela se espera? Age, de fato, como canal de comunicação entre os cidadãos e as autoridades responsáveis pelo tratamento do problema?

A resposta a estas perguntas, assim, de forma generalizada, é um tanto perigosa. Afinal, como já lembrava o saudoso (e polêmico) Nelson Rodrigues, “toda generalização é burra”. Quanto à divulgação de notícias, que dão conta de crimes e de outros atos de violência, os meios de comunicação até que se comportam a contento. Salvo uma ou outra (desonrosa) exceção, noticiam os acontecimentos do gênero com correção e sobriedade, atendo-se rigorosamente aos fatos. No que se refere às cobranças de providências, por parte das autoridades, todavia, deixam um tanto a desejar.

Claro que há exageros e distorções pontuais, aqui e ali, neste ou naquele veículo, deste ou daquele repórter (ou deste ou daquele editor que, no final das contas é, ou deveria ser, o responsável direto pelo quê, e como, a sua editoria publica). Nada, porém, que descambe para o ridículo, o caricato, ou o irresponsável (que no caso seria a apologia do crime ou a glamourização do criminoso), o que poderia ser caracterizado como antijornalismo.

Já comentei, em outros artigos, que não são os jornais, as revistas, os portais da Internet e as emissoras de rádio e de televisão que, de alguma forma, estimulam, eventualmente, a violência urbana e a criminalidade. Pelo contrário. Eles previnem a população, para que fique sempre atenta e vigilante para não se tornar vítima de assaltantes, de seqüestradores e/ou de assassinos.  

Encerrei, porém, o referido artigo da seguinte forma: “Mas não se pode, sobretudo, deixar de dar razão ao psiquiatra e criminalista norte-americano Frederick Hacker, quando adverte: ‘Penso que o volume e o grau de violência que toleramos, hoje, são realmente assustadores. Indignamo-nos, aqui e ali, com algumas brutalidades, mas estamos dessensibilizados. À força de tolerar, chegamos a endossá-la e encorajá-la’. Afinal, como diz o surrado clichê (mas oportuno neste caso): ‘Quem cala, consente!’. E, por omissão, estamos consentindo, de fato, nessa escalada da violência”.

Falta uma cobrança mais enfática, contundente e continuada da nossa imprensa às autoridades responsáveis pela segurança pessoal (e a do patrimônio) do cidadão. O jornalista Ib Teixeira, em entrevista no “Programa do Jô”, no dia 4 de junho de 2003, alertou para os dados de uma pesquisa que revelavam que o número de mortes violentas no País, em apenas 10 anos, havia chegado a 600 mil pessoas! Qual das guerras dos últimos tempos causou tantas vítimas fatais, num período relativamente tão curto?

A violência vem ceifando, sobretudo, a nossa juventude. Pesquisa, já antiga, intitulada “Mapa da Violência”, divulgada em 7 de junho passado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura”, Unesco, revela que 39,9% das mortes ocorridas na população entre 15 e 24 anos, em 2002, tiveram como causa o homicídio e 15,6% foram provocadas por acidentes de transportes. O estudo aponta crescimento de 88,6% de óbitos por homicídios entre os jovens nos últimos dez anos. Isso, a despeito da mortalidade total no País haver diminuído no período. Passou de 633 em 100 mil habitantes em 1980, para 573 em 100 mil em 2002. Essa situação, em vez de melhorar, se agravou muito.

O sociólogo da Unesco, Júlio Jacobo Waiselfisz, responsável pelo citado estudo, reconheceu que os jovens são a parcela da população mais vulnerável. E isto, em todo o mundo. Ainda assim considerou “absolutamente inaceitáveis” os índices que são registrados no Brasil. E concluiu: “Um país não pode não ter uma política pública para um setor da população que são 35 milhões”. E não pode mesmo! Alguma coisa tem que ser feita, e com urgência. A questão não comporta omissões de quem quer que seja e, sobretudo, dos meios de comunicação.

Diante dessa realidade nua e crua que a imprensa nos expõe, diariamente, se pode dizer, sem demagogia, que o Brasil vive, e há muito tempo, virtual guerra civil nas ruas, nos bares, nos becos, nas favelas e nos cortiços de suas principais cidades. É um conflito sequer admitido, sem líderes, sem bandeiras, sem ideologias e sem objetivos, mas que nem por isso deixa de existir e de estar sempre presente em nosso cotidiano. É caótico e imprevisível. Pode atingir qualquer um de nós, a qualquer hora e em qualquer lugar. E seus resultados são terríveis para a população.

A violência urbana, frise-se e reitere-se, não é um problema exclusivamente brasileiro e nem só dos países emergentes, ou do chamado Terceiro Mundo. E nem é fenômeno recente. Remonta à própria criação das primeiras cidades, instituídas, justamente, para proteger as pessoas de atos cometidos por predadores nômades. A nós, contudo, importa o que ocorre atualmente, e ao nosso redor.

É uma ingenuidade, na qual muita gente até bem intencionada incorre, atribuir a violência urbana “apenas” a questões sócio-econômicas, embora não se possa (e nem se deva) negar que estas têm enorme peso. As causas são múltiplas, desde as sociais (é claro), às psicológicas, econômicas, estruturais etc. E até mesmo as fisiológicas já foram detectadas por especialistas, conforme estudos que identificam a existência de "personalidade criminosa", feito pelo criminalista italiano Cesare Lombroso.

Nos casos de homicídio, (somados os crimes dolosos, ou seja, intencionais e planejados e os culposos, por negligência, imperícia ou imprudência), tendo por vítimas e por autores número crescente de pessoas jovens, a grande maioria não foi praticada, como se pode imaginar, por perigosos bandidos ou ousados e cruéis assaltantes. Esses delitos foram, em boa parte, cometidos por cidadãos comuns. Por pessoas aparentemente pacatas, que por este ou aquele motivo, via de regra banal, suprimiram vidas humanas.

É certo que o álcool e as drogas tiveram decisiva contribuição nessas mortes. E a visível e crescente desagregação da família em muito contribuiu para esse extremo de violência. Mas em nossas cidades mata-se pelos motivos mais corriqueiros e banais, como discussões sobre futebol, ou sobre trânsito, ou por ciúmes, ou até mesmo sem nenhuma razão, em repentes de raiva.

O cidadão não aceita mais permanecer refém passivo de abusados marginais, de perigosos bandidos, de insensíveis narcotraficantes, enfim, do crime organizado, que a cada dia se organiza mais e mais e dispõe de crescentes recursos tecnológicos, além de sofisticadas e poderosas armas (até mísseis, do tipo sting, já chegaram a ser apreendidos, além de minas terrestres com enorme poder de destruição e granadas) que as polícias, evidentemente, e até muitos exércitos, não dispõem.            

As pessoas não estão mobilizadas para cobrar, com maior ênfase, providências urgentes contra esse calamitoso estado de coisas. Na Argentina, anos atrás, um caso de seqüestro de um adolescente levou a imprensa a deflagrar intensa campanha. Em pouco tempo, a mobilização levou 600 mil pessoas às ruas para exigir providências das autoridades. Esse clamor popular teve, como resultado imediato, a aprovação, em tempo recorde, no Congresso desse país, de leis mais duras contra esse tipo de delito. Será que a imprensa da Argentina é mais competente do que a brasileira? Fica a incômoda pergunta no ar...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 
      


Jornal do caos



* Por Ronaldo Bressane.


Sol



Sobre sua mesa repousam sete envelopes – todos fechados. Domingo é o pior dia para sua doença. O dia das revistas semanais, dos cadernos de cultura, das estréias, dos filmes, das peças de teatro, dos vem aí, dos e-mails e convites pras festas fechadas de segunda e terça. Apoteose ou derrota mútua. O Agente precisa se alimentar, ele sabe, ou terá outra convulsão – decidido, caminha até a padaria francesa. Caindo pelas pernas, as calças se alargam ao redor de sua magreza. Azul – a boca aberta, espaço para que o céu invada seus pulmões. Tenta não parar na banca de revistas. Consegue. Seu corpo se movimenta solene – ele nem pensava enquanto seus olhos pediam ao garçom um copo d’água. A padaria está lotada de fregueses que saltam de carros grandes e motocicletas brilhantes. Espectador de dejejuadores, o mendigo de sempre – um albino de longos e ensebados dreadlocks – flutua invisível na calçada. O garçom não parece familiar ao Agente Especial. Nada lhe parece familiar. Somente um particular – os velhos da casa em frente, que alimentam os pombos em seu jardim de lajotas vermelhas. Ele os havia observado durante toda a semana: tão pontuais, não era preciso olhar o relógio para saber que são duas da tarde. Pede outro copo d’água com gás, gelo e limão. Decide beber um copo d’ água a cada dez minutos. “Maldito E”, murmura, para si mesmo.

Não entende muito bem a língua dos fregueses: “O que têm tanto pra falar tão cedo? Quem são?”, sussurra. “Será que pensam o mesmo de mim?” No fundo, não se importa tanto com isso, e seus colegas de padaria seguem lendo revistas e jornais e comentando as coisas impressas uns com os outros e o albino observando a todos sustenido, ombro a ombro, buscando a notícia, a mensagem, o sinal. Os pombos voam pelo ar – após o décimo-terceiro copo d’água e o último saco de milho. Uma mulher lê uma revista com imagens de pessoas de que o Agente não se lembra. Como se fosse um livro de figuras com indicações em outra língua. O Agente se surpreende: “Em uma semana teria mudado o mundo a ponto de seus personagens serem outros, completamente novos, um novo elenco?”, cochicha. Ao lado da revista da mulher, uma quiche de queijo derretido salpicada de alho-poró. O mendigo observa que um senhor deixou o caderno de Imóveis numa cadeira e precipita-se para pegá-lo: em voz alta, surdina algo como “Três dormitórios, closet, living room, sala de jantar, copa, cozinha, área de serviço, sacada, um quarto de empregada, piscinas adulto e infantil, duas vagas na garagem, sauna, salão de festas, tenda de massagem ao ar livre, segurança 24 horas, qualidade de vida, qualidade de vida, qualidade de vida”. O garçom pergunta ao Agente se quer comer alguma coisa. O garçom repete: “Satisfeito?”. Aflito, parece o garçom. Muitas pessoas por satisfazer. A fome cresce. A sede. O Agente pede “Outro copo d’água gelada, por favor” – guarda os copos plásticos uns sobre outros; a luz do sol produz neles reflexos azuis e dourados: não há nuvens no céu. Nos fios elétricos suspensos pelos postes de luz, sete pombos se equilibram, fixas gárgulas.

“Qualidade de vida.”

De um deles parte um tolete de bosta branca, que cai no capô de uma pick-up. O próximo projeta seu produto sobre o dorso de uma honda shadow, e outro vem melar o vidro de uma cherokee 4X4, em intervalos regulares, até que o sétimo pombo manda sua pequena porção de merda direto sobre o quiche da mulher que lê a revista, distraída, o garfo no ar ainda lentamente se encaminhando para a pasta de queijo e alho-poró – esta, temperada pelo excremento do pombo, vem se unir à saliva da mulher dentro de sua graciosa boca. A garganta do Agente seca quando ele vê a garganta da mulher se mover suave e animalmente satisfeita, enquanto vira outra página e espeta com o garfo o último pedaço do quiche, “Hmmm”. Todos seguem suas atividades de leitura de jornais e revistas – nos fios, silenciosos, os pombos obram –; o mendigo albino pesca com o olhar um notícia no caderno de Esportes lido por um jovem com gel na juba. Mais primitivos, os olhos do Agente voam para o outro lado da rua. Abraçados, os velhos observam a tempestade branca, tranqüilos, mudos. A velha parece sorrir. Alguma coisa naqueles freqüentadores de vernissages faz o Agente pensar em Adão e Eva na ilha de Caras, o que lhe dá “vontade de vomitar”, segundo afirma. Desta vez, agüenta até o fim. Tira umas notas do bolso, deixa sobre a mesa e sai da boulangerie.

Sentado na calçada, o mendigo lê classificados. Vigilante, o Agente não pode deixar de observar, por cima de seus dreadlocks piolhentos, o caderno Cotidiano, aberto na seção de necrológios. O Agente gasta horas dando voltas em torno do quarteirão de seu próprio prédio antes de recolher-se. As casas de diversões eletrônicas não abrem aos domingos.


__
Sétima parte de “Jornal do caos”, conto de Céu de Lúcifer [Azougue Editorial]

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e atua no HYPERLINK http://impostor.blogspirit.com http://impostor.blogspirit.com.




Ofélia


* Por Artur Rimbaud

I

Na onda calma e negra, entre os astros e os céus,
a branca Ofélia, como um grande lírio, passa:
flutua lentamente e dorme em longos véus...
--- Longe, no bosque, o caçador chamando a caça...

Mais de mil anos faz que a triste Ofélia abraça,
fantasma branco, o rio negro em que perdura.
Mais de mil anos: toda noite ela repassa
à brisa a romança que em delírio murmura.

Beija-lhe o seio o vento e liberta em corola
os grandes véus nas águas acalentadoras;
sobre os seus ombros o salgueiro se desola,
reclina-se o caniço à fronte sonhadora.

Nenúfares feridos suspiram por perto;
às vezes ela acorda, em vidoeiro ocioso
um ninho de onde vem tremor de um vôo incerto...
--- de astros dourados desce um canto misterioso...

II

Morreste sim, menina que um rio carrega,
ó pálida Ofélia, tão bela como a neve!
--- É que algum vento montanhês da Noruega
contou que a liberdade é rude, mas é leve;

--- é que um sopro liberta a cabeleira presa,
em teu espírito estranhos sons fez nascer
e em teu coração logo ouviste a Natureza
no queixume da árvore e do anoitecer.

--- É que a voz do mar furioso, tumulto impávido,
rasgou teu seio de menina, humano e doce;
--- em manhã de abril, certo cavalheiro pálido,
um belo e pobre louco, aos teus pés ajoelhou-se.

E aí o céu, o amor: --- que sonho, pobre louca!
Ante ele eras a neve, desmaiando à luz;
visões estrangulavam-te a fala na boca,
o infinito aterrava os teus olhos azuis!

III

--- E o poeta diz que sob os raios das estrelas
procuras toda noite as flores em delírio
e diz que viu na água, entre véus, a colhê-las
vogar a branca Ofélia como um grande lírio.


* Poeta simbolista francês, um dos membros do grupo conhecido como “Os cinco poetas malditos”    


Como o Super-Homem vai trocar o collant?


* Por Eliane Brum


O convite do aniversário de João Bolota trazia a seguinte observação: “Não precisa comprar presente. Se quiser, pode me trazer algum brinquedo seu ou fazer um desenho pra mim que já ficarei contente”. Muitas das minhas amigas com filhos pequenos declararam guerra contra o consumismo infantil. É uma tendência entre pais preocupados em não criar shopping-dependentes, que demandam cada vez mais mercadorias antes mesmo de perder os dentes de leite, e estimular uma relação solidária tanto com os amigos quanto com o mundo ao redor e desde cedo ampliado. Já levei sabão em pó em vez de presente, fraldas e leite, que depois foram doados para espaços comunitários devidamente visitados e escolhidos pelos pais dos aniversariantes. Mas João Bolota, assim conhecido porque antes de ser João já era uma “bolota” na barriga da sua mãe, pedia algo ligeiramente diferente em seu aniversário de 3 anos. Acabou nos levando a alguns labirintos internos e externos. E a um Super-Homem preso em seu collant azul.

De repente, lá estávamos nós, dois adultos, em estado de semipânico diante de nossos brinquedos. Acho que ele iria adorar o seu King Kong, sugeri. “O quê? Mas foi você que me deu...”, disse ele. E, em seguida desferiu um golpe baixo: “E o seu Alien? O tema da festa é monstros...” Meu Alien? Meu Alien? Você está se referindo ao MEU Alien? “O seu Harry Potter, então?”

Ele continuava a série de golpes abaixo da linha da cintura. Mas eu também podia ser má: o seu Dodô! “Mas os (marinheiros) europeus comeram todos os (pássaros) dodôs no século 17. O meu é o último!”, disse ele, maduro. Pois então. É além de tudo educativo. A Paula (a mãe do João Bolota) vai adorar explicar toda a destruição, genocídios, etnocídios e dodocídios envolvidos no processo colonial. É perfeito! Ele não achava. Aos 44 anos, estava agarrado ao dodô. “E o seu tiranossauro rex?” Meu olhar cheio de dentes o desestimulou a continuar. Cinco minutos mais tarde, estávamos um diante do outro no meio da sala de casa, em posição de duelo, eu com uma miniatura do Freud na mão, ele brandindo o menir do Obelix.

Caímos em nós. E no ridículo. Havíamos falhado miseravelmente no quesito desapego. Não estávamos preparados para nos descolarmos da infância.

Envergonhados, mas bem menos do que deveríamos, partimos em busca de alternativas que não traíssem a proposta dos pais do João Bolota, que era a de estimular a troca, a doação e o desapego. Em nosso atual estágio, estávamos de fato em busca do desapego alheio, o que nos levou a estacionar nossos pés diante da banca da feira especializada em brinquedos usados. “Não é usado, é vintage”, ele disse, me corrigindo todo animado. Sim, sim, muito mais chique. A verdade era que sabíamos muito bem que ali não havia nada de desapego. Por trás daqueles brinquedos de outros tempos em geral há um adulto em crise financeira ou um adulto que já não vê mais sentido em um monstrinho verde, agora reduzido à mera mercadoria, o que em qualquer caso é um pouco triste.

Acompanhei de perto esse percurso. Dois anos atrás, um amigo desempregado precisou vender suas recordações da infância, as que tinha guardado para um filho que não veio, para um desses adultos enigmáticos, mezzo encantadores, mezzo perversos, que compram o brinquedo dos outros para revender. Guardou para si apenas um helicóptero, bastante valorizado nesse mercado, que tinha um defeito numa hélice. O comprador sugeriu que trouxesse o helicóptero que ele o consertaria, mas meu amigo interpretou a oferta como um plano maligno para tomar-lhe o brinquedo. Fantasiou que o comprador tinha sido uma daquelas crianças que querem para si todos os brinquedos do mundo e não os emprestam para ninguém. Agarrou-se ao helicóptero como se suas memórias mais queridas morassem na minúscula cabine, reconhecendo-se mais quebrado que a hélice.

Há talvez uma certa crueldade envolvida no ato de comprar/vender restos da infância. Aquele que coleciona clássicos coloca na estante também o cadáver de uma criança desconhecida. Às vezes ele mesmo. E talvez nós, como ele, estivéssemos ali, naquela banca ao mesmo tempo colorida e desbotada, em busca de algo que já não pode ser recuperado.

O dono da banca comia uma lasanha. Quanto é aquele He-Man montado num tigre vermelho?, perguntei. O homem pareceu irritado por ter sido instado a parar de mastigar. “Uns 60 pelo boneco, uns 50 pelo tigre”, respondeu, num grunhido. Ficamos em dúvida sobre o potencial do presente. Para quem não havia sido criança nos anos 80, He-Man seria apenas um loirão de sunga. Vimos, então, um Moai, aquelas estátuas gigantescas e misteriosas da Ilha de Páscoa. Esta tinha 5 centímetros e era de plástico bege. Com uma bateria, que não havia ali, o Moai falava. Nossa empolgação atingiu 10 graus na escala Richter. Finalmente descobriríamos o que um Moai poderia dizer sobre o mundo, sobre a vida, sobre sua própria existência. Basicamente, um dos mistérios da humanidade estava prestes a se revelar diante de nós e do modo mais improvável, como num daqueles filmes em que tudo começa numa lojinha de quinquilharias. Se o homem da lasanha fosse um chinês, seria um filme.

Perguntamos ao dono da banca, que agora tinha um pedaço de queijo pronto para saltar do seu queixo sobre uma Barbie Malibu: o que o Moai diz? E esperamos, de mãos dadas e se apertando, a respiração suspensa. “Chiniashitsu”, eu ouvi. Já ele ouviu algo terminado em “ão”. Discutimos um pouco, aos cochichos. Ele achava que eu tinha ouvido o nome de um escritor de autoajuda, o que seria trágico para a humanidade, depois de tantos séculos. Eu dizia que com certeza não era nada com “ão”. Decidimos esclarecer. Ao olharmos para o homem, percebemos que ele continuava comendo a lasanha, mas havia uns caninos novos na sua boca. Desistimos do Moai. Jamais saberíamos o que ele tinha a dizer. Talvez fosse melhor assim.

Então o vimos. E como não o vimos antes? Era o Super-Homem. Não o remake, mas uma versão antiga. Estava dentro da caixa, tinha até manual. E o fascinante dessa versão era que ela oferecia a possibilidade da transformação. Em geral, os heróis só são oferecidos na versão herói. Estão lá, com suas máscaras e seus collants brilhantes. Não têm vida privada, não ficam nus, não relaxam. Aquele ali, não. Ele vinha vestido com sua roupa de salvar mundos, mas havia ao lado dele uma cabine telefônica na qual ele podia se trocar e virar Clark Kent. Nunca entendi como ele conseguia fazer isso dentro de uma cabine telefônica, com aquelas botonas e a sunga vermelha por cima de tudo, mas essa é uma questão para outro momento. Nas costas da caixa a metamorfose estava bem explicada: em caso de necessidade, ele rapidamente passava do collant azul do Super-Homem para o terninho preto do Clark Kent. Para isso, bastava um minuto dentro da cabine telefônica.

Há dois tipos de super-heróis de quadrinhos, criados no século 20, que conquistaram permanência no imaginário de gerações, em parte graças ao cinema. Há os humanos, como o Homem-Aranha e o Batman, cuja essência seria dolorosamente humana e dotada de uma trajetória de perdas, em geral precoces, já que tanto Peter Parker quanto Bruce Wayne são órfãos. E há os deuses, como Thor, e os alienígenas, como o Super-Homem, que precisam se disfarçar (ou serem condenados a uma identidade frágil) para virarem humanos, já que sua essência é de super – mais que humano.

A máscara do Super-Homem é o Clark Kent. E Clark Kent ele se torna ao colocar óculos. Em tempos pré-cirurgia de correção de miopia, os óculos apontavam uma deficiência bem humana. Os óculos eram a fragilidade que mascarava o super em humano. Entre os vários diálogos antológicos do diretor Quentin Tarantino, o personagem Bill (David Carradine), em Kill Bill 2, diz à Noiva (Uma Thurman): “O Super-Homem não se transformou em Super-Homem. O Super-Homem nasceu Super-Homem. Quando ele acorda de manhã, ele é o Super-Homem. Seu alter ego é Clark Kent. (...) O que Kent usa – os óculos, o terno – é o uniforme do Super-Homem para se misturar a nós. Clark Kent é como o Super-Homem nos vê. E quais são as características de Clark Kent? Ele é fraco, ele é inseguro, ele é um covarde. Clark Kent é a crítica do Super-Homem a toda a raça humana”.

Entramos numa espécie de transe nerd. Daríamos um Super-Homem que virava Clark Kent para o João Bolota. Com a caixa finalmente em nossas mãos, começamos a examinar o presente, muito excitados. Só para descobrir que nossa visão de raio-x tinha falhado: não havia terninho nem óculos. Só mesmo a cabine telefônica. É claro que isso não fora mencionado pelo lasanha-man. Queríamos voar até a banca, mas tivemos de nos virar e retroceder sobre nossos pés mortais. “Não tem terninho nem óculos?”, perguntei, com o que pensei ser uma voz poderosa. “Não”, disse ele, sucinto. “Não?” Não. Pulverizamos lasanha-man com nosso superolhar, mas lasanha-man parece não ter percebido, ocupado em dar aquela limpadinha básica com a língua nos dentes. Caminhamos prostrados até a festa, destituídos de nossos superpoderes por um vilão de filme Spaghetti.
“É vintage”, disse à mãe do João Bolota, já antecipando uma justificativa sobre a ausência do terninho e dos óculos. “Sério? Que sensacional... Onde vocês acharam isso?”, disse ela, gentilíssima. Foi só depois de seis cachorros-quentes (sou uma cachorroquentólatra) que comecei a me deprimir com a situação do Super-Homem. Nenhum de nós dois tinha a coragem de encarar o João Bolota. Não que ele tivesse reparado, ocupado que estava em deslizar sobre a nossa cabeça numa espécie de tirolesa, já que a festa transcorria num buffet infantil com esportes de aventura. E quando ele quiser tirar o collant?, eu me preocupava. Comecei a imaginar o Super-Homem nu, trancado na cabine telefônica, sem coragem de vestir o collant azul brilhante mais uma vez para enfrentar o mundo lá fora. Eu me identificava com ele. Não sou super, mas muitas vezes estive nessa situação logo cedo de manhã. Sem contar que é de uma perversidade inominável condenar alguém, mesmo que um super-herói, a passar a vida de collant.

Demos ao João Bolota o pior presente do mundo: um super-herói sem humanidade. Se servir de atenuante, o que levou ao trágico desfecho foi uma sequência de eventos e relações bem humanas. Mas não sou muito favorável a atenuantes. Já estava pronta para interceptar Bolota com um rasante no teto, onde, juro, ele estava naquele momento, para dizer a ele: perdoe-nos, João Bolota, na próxima vez a gente faz um desenho. Então me lembrei. Há algo que podemos dar a ele. Nós podemos fabular. E dar um sentido novo a essa falta que possa transcender essa narrativa pateticamente real de perdas, enganos e lasanha fria. Algo sem preço.

Sabe, João Bolota, antes de você esse Super-Homem pertenceu a alguém que o amou. Mas que já não brincava mais com ele porque achava que, depois de crescido, não podia mais andar voando por aí de collant azul. Esquecido de como se brincava, um dia ele fazia uma ponte aérea, espremido na poltrona do meio da classe econômica. Espichou o pescoço e conseguiu ver uma nesga da asa do avião no céu, entre o banco da frente e a cabeçona do passageiro ao lado. Lembrou-se então de que um dia tinha voado como Super-Homem e sentiu uma dor aguda no peito. Pensou que estava enfartando, mas a dor desapareceu depois de um minuto e ninguém, nem mesmo a aeromoça que lhe oferecia uma batata de saquinho, notou que ele havia vivido uma quase morte.

Ao chegar em casa, depois de amargar duas horas no trânsito, ele resgatou seu boneco da parte de cima do armário embutido. Encontrou o Super-Homem agonizando, não por causa da criptonita, mas do mofo, entre edredons do inverno e uma bota que tinha perdido o salto. Decidiu que seu Super voaria com a capa de uma outra criança. Quando o sábado ainda não tinha amanhecido, ele se esgueirou pela feira e infiltrou o Super-Homem na banca de brinquedos, bem em cima, vistoso, entre o Forte-Apache e um carrossel de cavalos coloridos. (É por isso que lasanha-man apenas fingiu ser esperto. De fato, ele nem sabia de onde tinha aparecido aquele Super-Homem.)

Quando o verdadeiro companheiro do Super-Homem já ia se despedindo de seu velho amigo, temeroso de ser surpreendido nessa atividade subversiva, descobriu que, mesmo vestido, estava nu. O sol escalava o céu, afobado, e ele não queria ser visto pela multidão em sua monumental fragilidade. Foi nesse momento que ele pegou o terninho preto de dentro cabine telefônica e o vestiu às pressas. Em seguida, mascarou-se com os óculos.

Você se lembra, João Bolota, daquele homem de óculos e terno preto que parecia um jornalista na sua festa de aniversário? Havia vários jornalistas na sua festa de aniversário, porque seus pais são jornalistas, mas só um deles tinha a cara do Planeta Diário e de um namorado da Lois Lane. Foi bem rápido, não sei se você chegou a ver. Ele escondeu-se por um instante atrás do monstro de balões perto do bolo, apenas para ter certeza de que o seu Super ficaria bem. Ao avistar você, voando pelo teto, ele teve certeza de que tinha feito a coisa certa. E se foi. Eu ainda o vi sair, com um sorriso maroto na cara, ajeitando os óculos sobre o nariz vermelho.

É isso, João Bolota. Ele queria muito lhe dar o Super. Mas ainda precisava do homem.

Texto publicado nas revista Época.


* Jornalista e escritora, ex-colunista da revista Época
O apurinã que dá bolo em desembargador


* Por José Ribamar Bessa Freire


Parecia até coqueluche. Com dor de ouvido e uma tosse seca de macaco-guariba, o índio apurinã Alderi Francisco da Silva, hoje com 38 anos, morador da Aldeia Nova Esperança, na Terra Indígena de Água Preta, procurou o Posto de Saúde, na cidadezinha de Pauini, no rio Purus (AM). Lá, a doutora Cíntia, depois de auscultá-lo com o estetoscópio, junto com remédio deu-lhe um "puxão de orelha":
-  Escuta bem, meu filho, ninguém entra num posto médico assim, só de calção. Aqui não é casa da sogra. Respeito é bom e eu gosto. Na próxima vez, só atendo se vier decente, com camisa.

 A resposta veio intercalada por fingido acesso de tosse:
- Doutora, se eu entrar aqui peladão, a senhora é obrigada a me atender, porque andar nu é costume tradicional dos Apurinã. Foi assim que nasci, nuzinho, no meio da floresta.
- Negativo. Eu também nasci nua. Mas nem por isso tiro a roupa para atender meus pacientes.
- Não tira porque não quer. Pode tirar que eu não me importo. Numa boa. Não reclamo, embora a lei que me protege não ampare a senhora. O artigo 231 da Constituição brasileira de 1988 garante que eu posso manter meus "costumes, línguas, crenças e tradições". A lei me permite ficar nu. Engraçado! A senhora, que não pode reclamar de minha nudez, reclama. E eu, que posso reclamar da sua, nem reclamo.

Se a conversa durasse um pouco mais, a médica acabaria convencida de que precisava se despir, pelo menos, dos seus preconceitos. Alderi conhece a Constituição de trás pra frente Aos seis anos de idade, já lia jornal, ajudado pelo caboco Cosme, casado com sua tia. Depois, fez o curso de formação de professores indígenas, organizado pela Comissão Pró-Indio, do Acre, onde estudou com professores das melhores universidades públicas brasileiras. Foi nos intervalos das aulas, que fiquei ouvindo suas histórias.

ÉGUA, RAPAZ!

Tem gente que nasce músico, pintor ou poeta. Alderi nasceu advogado. Na verdade, não nasceu. Foi parido por força de um ´habeas-corpus´. Daí vem, com certeza, esse dom que tem para se movimentar no mundo das leis.
- Não sei o que acontece comigo. Basta ler uma vez - uma só - e a lei fica dormindo aqui dentro da minha cabeça. Aí, quando eu preciso, ela desperta - ele diz.

Com memória prodigiosa e a capacidade de usar e interpretar leis, Alderi se tornou porta-voz dos professores indígenas, que estavam numa situação irregular: não pertenciam ao quadro permanente de professores do município de Pauini e recebiam uma merreca de salário, 110 reais, sempre atrasado. Em nome de seus colegas, procurou o então secretário municipal de educação, de nome Dalmir:
- Secretário, o município tem de contratar professores com salário decente.
- Não tem vaga pra índio prevista na dotação orçamentária.
- Não leve a mal, secretário, mas o poder público é obrigado a proteger as manifestações das culturas indígenas. Tá lá, no artigo 215 da Constituição. Combine isso com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB, que garante aos índios a oferta de educação escolar bilíngue e intercultural em seus artigos 78 e 79. Se não contrata os professores, o senhor transgride as leis, quem viola as leis é criminoso. E lugar de criminoso é na cadeia.
- Êpa, rapaz, olha como fala! Deixe de ser abusado. Demito vocês todos.
- Secretário, quem nunca entrou, não pode sair. Para demitir, é preciso primeiro nos contratar.
- Então, contrato, só pra poder demitir, por justa causa, por abandono de emprego. Nenhum professor indígena quer trabalhar, só quer receber. Eu mesmo fui várias vezes lá na aldeia supervisionar as escolas e não encontrei ninguém na sala de aula. Vocês não estão cumprindo o calendário escolar. Como é que eu vou criar vaga de professor indígena, se vocês não dão aula?
- Acontece que a gente tem calendário próprio, diferente do seu. Não havia ninguém na escola, porque a aula era de pescar, caçar e conhecer as plantinhas. Tem rio dentro da sala de aula, por acaso? Tem floresta dentro da escola? Tem paca, tatu, cotia? A Constituição, no art. 215, reconhece nossos conhecimentos tradicionais e nossa forma própria de aprender. A Resolução nº 3/99 do Conselho Nacional de Educação diz que a gente pode fazer isso. A lei nos protege.

O secretário, sem argumento, na base do "quem manda aqui sou eu", ameaçou Alderi, que deu o troco, dizendo que denunciaria o fato ao doutor Kleber Gesteira Matos da Coordenação Geral de Educação Indígena, do MEC, em Brasília.
- O Ministério Público Federal vai mandar cortar o FUNDEF de Pauini - disse.

Pálido, com medo de ter seu fundef decepado, o secretário recuou:
- Égua, rapaz! Não sabe nem brincar! Eu tava só te testando.

A reivindicação foi, finalmente, atendida.

CADÊ A LEI?

A notícia sobre o domínio da palavra e o poder argumentativo de Alderi começou a se espalhar pelas aldeias do rio Purus. Num domingo ensolarado, a polícia prendeu seis índios que haviam tomado um porre e andaram fazendo umas presepadas pelas ruas de Pauini. A família deles só conseguiu encontrar Alderi na terça-feira. Ele foi à delegacia:
- Sargento Peninha, o senhor é autoridade, tem identidade, mas eu também. Me ouça.
 -  Então fale rápido, que meu tempo é pouco.
-  Vim aqui libertar meus parentes da cadeia.
- É rúim, einh! É mais fácil você ficar do que eles saírem. Foram presos porque estavam bêbados.
- Então, sargento, se o motivo foi esse, pode soltar, porque agora eles não estão mais bêbados. Acabou o motivo que deu origem à prisão.
- Rapaz, você tá gozando com a minha cara, é? Você sabe muito bem que a lei proíbe vender bebida pra índio.

Foi aí que Alderi deu o xeque-mate:
- Então, desculpe, mas o sargento prendeu as pessoas erradas. Tinha que prender os comerciantes que venderam e não os índios que compraram. Nenhuma lei proíbe índio de comprar. Se tiver essa lei, me diga qual é o artigo e em que código está.
- Olha, vai embora, antes que eu te prenda.
- Tudo bem! Pode me prender. Mas eu quero que o senhor me dê isso tudo por escrito, num documento assinado embaixo: Sargento Peninha. O Ministério Público Federal vai processar o senhor.

Fez-se um silêncio eterno
 - E aí, sargento, o senhor vai ou não vai me dar o documento?

O sargento Peninha, com cara de égua, respondeu com raiva:
- Vou soltar agora. Mas quem vai assinar o papel é você, seu índio atrevido, um termo de responsabilidade. Você sabe o que é isso? Se eles voltarem a fazer arruaça, quem vai preso é você.

PORTA DE XADREZ

Alderi saiu da cadeia, triunfante, acompanhado pelos seis índios. Foi sua consagração, como advogado de porta de xadrez. Depois disso, seus serviços advocatícios de rábula começaram a ser requisitados também por não-índios. O seringueiro Zezinho, de origem cearense, estava mofando na prisão, acusado de haver estuprado uma índia. Implorou:
- Chamem o Alderi.

Dessa vez, o duelo verbal foi com o tenente Miguel, da PM do Amazonas.
- Tenente, apresento meus respeitos e digo que vim soltar o Zezinho.
- Não quero conversa. Ele é um estuprador e vai apodrecer aqui.
- Ele não estuprou ninguém. É homem sério, trabalhador, sem antecedentes. Deu apenas um empurrão na índia. Tem testemunha.
- Olha, Alderi, não te mete. Ele é branco, você não tem nada a ver com isso.
- Aí é que o senhor se engana, tenente! O senhor é autoridade no âmbito da lei estadual e da lei orgânica municipal. Mas nós somos regidos pelo Estatuto do Índio, a Lei 6001, de 19 de dezembro de 1973, que é federal. O Zezinho trabalha pra gente, como agente florestal, dentro da reserva, sob nossa responsabilidade. Pra prender ele, o senhor invadiu área indígena, o que só poderia ser feito pela Polícia Federal, com ordem de um juiz federal. A prisão é ilegal.

Os argumentos nocautearam o tenente. Sem poder revidar, ele soltou o seringueiro, na hora, depois de perguntar dele, na frente de todo mundo, por precaução:
- Te bati? Te torturei? Não. Então, vai embora.

Mas o Zezinho disse que não ia, porque não podia deixar na delegacia uma espingarda dos Apurinã, calibre 16, que havia sido aprendida com ele. O tenente foi inflexível:
 - Não. De jeito nenhum. A arma fica aqui.

Alderi teve de gastar mais saliva:
- Tenente, cadê o boletim de ocorrência?
- Não foi feito.
- Então, não existe registro de apreensão da arma. Se ela legalmente não foi apreendida, ninguém pode me impedir de levar prá aldeia o que pertence à minha comunidade.
- É. Mas eu ainda posso fazer o registro.
- Tenente, o senhor é inteligente, sabe que se registrar, estará confessando por escrito o crime de confiscar um patrimônio indígena. A espingarda é de toda comunidade, serve pra caçar, ajuda nossa sobrevivência. O Ministério Público Federal não vai gostar nadinha disso.

Alderi, com Zezinho ao lado e a espingarda a tiracolo, desfilou como herói entre os 19.299 habitantes de Pauini, o quarto município mais miserável do Brasil, segundo o mapa da fome desenhado no final do ano passado pela Fundação Getúlio Vargas. Suas histórias lembram muito as do Pedro Malasartes, figura do conto popular, inteligente, astucioso, invencível na sua luta contra os poderosos, os avarentos, os ricos, os vaidosos.

Por onde andará Alderi? Nunca mais o vi, não sei se chegou a fazer o curso de direito. Aprendendo o latinorum, ele passaria a perna em muito juiz, daria bolo em desembargador e botaria, data venia, in orificio inimicorum indianorum.

P.S. Publicado originalmente em 29/02/2004 com o título O JURISTA DESCAMISADO DE PAUINI. O texto revisado e atualizado é agora republicado com modificações.

* Jornalista e historiador


sábado, 30 de maio de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos e dois meses de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Inconstância constante.

Coluna Direto do Arquivo – Risomar Fasanaro, conto, “Mulher”

Coluna Clássicos – Lêdo Ivo, poema, “O caminho branco”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, poema, “Pra não dizer que não falei do amor”.

Coluna Porta Aberta – Flávio Tiné, crônica, “Também quero ser indiciado”

Coluna Porta Aberta – André Luís Rabelo, artigo, “Eu não entendo as moças do RH”.


@@@

Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.