domingo, 26 de abril de 2015

Poema do vilarejo1


* Por José Paulo Lanyi



(Tiago caminha contra a chuva em rua escura. Tenta aproximar-se do Estrangeiro, que anda à sua frente, sem lhe perceber a presença. O vento dificulta os passos de Tiago, lentos e claudicantes, por vezes retrógrados. Voz declama um poema)


VOZ-  Marchai... Marchai.... Marchai contra as verdades, ouvidas, lembradas... Aura de lama à cabeça... Pobre cabeça, cheia de séculos... Pobre cabeça, cheia de séculos! Marchai... E adiante a encontrar os prados...  Além das cercas... E afinados, o desejo e a esperança... Os sonhos de um mundo, de um todo que habita... as mais belas grinaldas da alma.. E da alma tirai o ímpeto... E então vencer o santo e o profano das grandes porteiras... Ao alto, o sol a queimar... Meter-se pelas cercas... Rasgar a pele, tingir o cetro com o sangue vertido por dentro. Vertido por dentro! O sangue a empurrar-se...para fora... para frente... sem derramar-se, contudo. E o vento será o de sempre... E o sangue vencerá o vento... Sangra...!  Sangra...! Inunda a alma dos tempos! Que manda na vida! Sangra! Que manda na morte! Sangra! Que manda na morte do morto! Pois que o passado é o morto no presente! O tempo a matar o morto! Põe-se pra frente, sangue do peito! O sangue vivo do peito... O peito é só um escudo... O peito... é só um escudo... Onde está o cetro?! Onde está o cetro?! Muitos cetros... Muitos cetros... Forjados no aço dos tempos... Dos mortos que vivem e que matam! (pausa) Onde está o cetro? Como ganhar os prados? Onde a imensidão dos prados? Onde as cercas, onde as cercas e os cetros? Onde os anos dos séculos? Onde a morte na vida? Onde a vida na morte dos dias?  Onde o cetro, onde a cerca?  (pausa) Houve cercas e cetros... Houve a morte em vida... Os tempos jorraram e o sangue estancou... Os tempos jorraram e o sangue estancou... O sangue jorrou pra fora... Sangue jogado fora... E estancado por dentro... Inútil, estancado por dentro. Inútil, escondido do peito. E o peito é só um escudo... Por que estancar o sangue?!


O peito é só um escudo...Por que matar os prados?! Por que colher a morte da vida?! O peito é só um escudo...  Por que semear os tempos? Semear cabeças
com aura de lama? Semear cabeças, cheias de tempo e de lama? Cabeças cheias de séculos... De cercas e cetros... Marchai... cortai as cabeças dos séculos!

(Apagam-se as luzes)


1- Da peça “Quando Dorme o Vilarejo”.


(*) José Paulo Lanyi é jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e da coletânea “Teatro de José Paulo Lanyi e Outros Loucos” (no prelo), todos da editora O Artífice. Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a trilha “Invernada” e a sinfonia “Atlântica”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário