domingo, 19 de abril de 2015

Conto de inverno


* Por William Shakespeare
                                      

ATO I – Cena I

Antecâmara do palácio de Leontes. Entram Camilo e Arquídamo.

ARQUÍDAMO - Se alguma vez, Camilo, tiverdes oportunidade de visitar a Boêmia, em missão idêntica à que me trouxe aqui, vereis, como disse, a grande diferença que existe entre nossa Boêmia e vossa Sicília.

CAMILO - Creio que no próximo verão o Rei da Sicília pretende pagar ao Rei da Boêmia a visita que lhe deve.

ARQUÍDAMO - Então, a nossa hospitalidade nos vai deixar envergonhados, mas o nosso amor nos justificará, porque...

CAMILO - Suplico-vos...

ARQUÍDAMO - É verdade; falo com conhecimento de causa. Não nos será possível, com tanta magnificência... uma tão rara... Não sei como expressar-me. Teremos de dar-vos alguma bebida soporífica, para que vossos sentidos, não percebendo nossa insuficiência, ainda que não nos possam elogiar, pelo menos não nos censurem.

CAMILO - Avaliais muito alto o que vos dado de boa vontade.

ARQUÍDAMO - Podeis crer que falo de acordo com meu entendimento e como impõe a honestidade.

CAMILO - Com relação à Boêmia, Sicília nunca poderá mostrar excesso de amabilidade. O Rei da Sicília e o da Boêmia passaram juntos a mocidade, tendo entre eles a amizade criado tão profundas raízes, que não poderá deixar de produzir galhos. Desde que a compostura da idade viril e as obrigações reais os separaram, suas relações, ainda que não diretas, têm sido mantidas regiamente por meio de mimos, cartas e em baixadas amistosas, de forma que pareciam continuar juntos, embora estivessem separados e que se apertavam as mãos por sobre um grande abismo e se abraçavam dos confins dos ventos contrários. Que o céu conserve essa amizade.

ARQUÍDAMO - Penso que não há no mundo malícia nem pretexto que possam modificá-la. Vosso jovem Príncipe Mamílio vos proporciona me afável satisfação não conheço gentil-homem de maiores esperanças.

CAMILO - Nesse ponto, concordo convosco; é uma criança admirável, que cura, realmente, seus súditos e deixa vigorosos os corações envelhecidos. As pessoas que já usavam muletas antes do seu nascimento, ainda querem viver para vê-lo homem feito.

ARQUÍDAMO - E a não ser por esta razão, morreriam de grado?

CAMILO - Sim, no caso de não terem outra desculpa para quererem viver mais tempo.

ARQUÍDAMO - Se o rei não tivesse filho eles desejariam continuar vivendo até que lhe nascesse um.

Cena II

O mesmo. Um quarto de Estado no palácio. Entram Leontes, Políxenes, Hermíone, Mamílio, Camilo e séquito.

POLÍXENES - Já serviu de sinal por nove vezes o úmido astro ao pastor, desde que deixamos sem fardo nosso trono. Igual espaço de tempo, caro mano, deveríamos encher com nossos agradecimentos, mas como vosso devedor perpétuo, ainda assim, nos partíramos. Por isso, tal como um zero em ponto vantajoso, multiplico por um "muito obrigado" todos os que antes dele se encontrarem.

LEONTES - Deixai de lado os agradecimentos por algum tempo, para no-los dardes no instante da partida.

POLÍXENES - Amanhã mesmo, senhor, há de ser isso. Inquieto deixam-me os meus receios sobre o que é possível germinar ou nascer em nossa ausência. Não sopre em casa vento algum maligno, que me faça dizer: "Os meus temores eram justificados" Além disso, já cansei por demais Vossa Realeza.

LEONTES - Nosso vigor, querido mano, pode opor-se a mais do que isso.

POLÍXENES - É-me impossível ficar mais tempo.

LEONTES - Uma semana, ao menos.

POLÍXENES - Não; impossível; amanhã.

LEONTES - O tempo dividamos, então, sem que eu aceite, desta vez, objeções.

POLÍXENES - Não insistais, por favor, assim tanto. Voz nenhuma, no mundo inteiro, sim, me poderia convencer como a vossa, o que sem dúvida agora se daria, caso houvesse qualquer motivo urgente em vossos rogos e em mim fortes razões para esquivar-me. Meus negócios me atraem para casa; se insistirdes comigo, me castiga vossa amizade. Minha permanência vos é pesado fardo, a um tempo, e incômodo. Para obviar a ambos, mano, despeçamo-nos.

LEONTES - Emudeceu minha rainha, acaso? Dizei alguma coisa.

HERMÍONE - Tencionava, senhor, ficar calada até que houvésseis dele arrancado o juramento explícito de que não ficará. Tentais vencê-lo com frieza excessiva. Declarai-lhe que tendes a certeza de que tudo na Boêmia está bem, como o proclamam as novas recebidas ontem mesmo. Falai-lhe assim, porque dessa maneira o batereis, no seu melhor reduto.

LEONTES - Muito bem dito, Hermíone.

HERMÍONE - Se acaso tivesse dito que quer ver o filho, fora razão de peso. Ele que o jure; depois deixa-o partir. Ele que o jure, que aqui não ficará, pois haveremos de tocá-lo com nossas próprias rocas.

(A Políxenes)

HERMÍONE - Ora a pedir me atrevo uma semana de vossa real presença. Ao visitar-vos na Boêmia meu senhor, dar-lhe-ei licença para ficar um mês além do prazo marcado para a volta, embora, Leontes, não te ame menos uma pancadinha de relógio do que qualquer esposa que acate seu marido. Resolvestes ficar?

POLÍXENES - Senhora, não.

HERMÍONE - Sim, ficareis.

POLÍXENES - Em verdade, é impossível.

HERMÍONE - Em verdade? Escusais-vos com juras muito fracas.
Mas embora com vossos juramentos das esferas os astros arrancásseis, eu vos diria: "Não, senhor, é inútil falardes em partir' De forma alguma. Esse "de forma alguma" pronunciado por uma dama é tão potente como se dito por um rei. Não resolvestes ainda? Então, forçada sou a deter-vos como meu prisioneiro, não como hóspede. Pagareis, desse modo, ao vos partirdes, vossa estada entre nós sem esbanjardes os agradecimentos. Que dizeis? Hóspede ou prisioneiro? Pelo vosso terrível "em verdade' é inevitável: tereis de ser um ou outro.

POLÍXENES - Então, vosso hóspede, senhora, pois ser vosso prisioneiro, para mim fora ofensa mais difícil de cometer, que para vós puni-la.

HERMÍONE - Não serei carcereira, então, mas vossa hospedeira bondosa. Vamos; quero dirigir-vos perguntas sobre todas as peraltices que com meu marido fizestes quando crianças. Ambos éreis, de certo, nobrezinhos mui galantes.

POLÍXENES - Pois não, formosa soberana, moços que criam sempre ter diante de si dias em tudo iguais e que haveriam de ser sempre rapazes.

HERMÍONE - Meu mando, decerto, era, dos dois, o mais terrível.

POLÍXENES - Éramos como dois cordeiros gêmeos que um para o outro balavam, saltitantes ao sol, de tão contentes. Permutávamos nossa inocência apenas, inocência. A doutrina do mal desconhecendo, nem sequer conceber então podíamos que alguém a conhecesse. Se tivéssemos continuado a viver dessa maneira, sem que nossos espíritos ingênuos, pelo sangue levados, se exaltassem, com ousadia ao céu nos fora lícito responder: "Não culpados", excetuando-se nossa herança mortal.

HERMÍONE - De onde concluímos que tropeçastes, desde então, por vezes.


* Um dos maiores poetas e teatrólogos de todos os tempos.

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