sábado, 18 de abril de 2015

A lança trespasse-lhe o calcanhar do amor


* Por Eduardo Murta


É como um piano ao rabicho da alma que a timidez pesa sobre Cristiano. Chumba-lhe as melhores intenções, desejos mais densos, mas agora ele crê que é tempo de romper limites. Chegava, afinal, aos 20 anos. E por aquelas estações debutaria no álcool – um degrau a mais na escala da felicidade – e descobriria os primeiros efeitos da maconha, lhe emprestando a sensação de que as nuvens eram logo ali.

Foi calibrando-se assim, aos experimentos, que decidiu: iria arranjar namorada, ainda que tivesse fluência quase nula naquelas coisas do querer. Virgem no sexo. Verde no amor. Fazia mal, não, porque se acharia. Começou pelo bê-a-bá. É Cristiano à banca da esquina, garimpando receitas. Sai de lá com revistas clareando as formas de aproximação, as palavras-chave, elencando do que gosta ao que não gosta o mulherio. Que evitasse combinações berrantes e passasse ao largo de perfumes extravagantes, destes que se sobrepõem à sombra da própria pessoa.

Freqüentou bares, bibliotecas, praças de alimentação e até cultos religiosos entre um janeiro e um dezembro. Nenhum encaixe. Nem beijo sequer. Prometera que só beijaria havendo sentimento. Daí, desviou dos lábios de Jussara, Dalva, Tânia, Mariana, Lila, Valéria e Cida. E viu, contratorpedos, as bocas de Fernanda, Vivi, Bel, Márcia, Lina e Fabi retrocedendo, a que entendesse como um não.

Cruzou noites de insônia, buscando respostas. Olheiras formando amálgamas à face. Foi quando bebeu whisky no bico, deixou barba por fazer – um Tiradentes sem Norte. E deu com os puteiros da Zona Sul. Seios turbinados, coxas convidando, bundas desenhadas como por encomenda. Mergulhou no desejo animal, por inteiro. E lá só reforçou a convicção: queria mesmo alguém com quem repartisse lençóis e um mínimo de sonho.
Deu de ombros aos que julgavam fora de época. E seguiu duelando com as incertezas, dessas que lhe haviam criado lodo inútil até por entre os poros. Matutou em como manter-se adiante. Se ao natural, ao curso das coisas, ou se por encomenda. Tentara de tudo. Em festa, em velório. E nada de acontecer. Resolveu lançar a sorte. Iria se anunciar. Seguro que seria mais divertido.

E lá estava, num domingo de manhã, sete linhas nos classificados de um grande jornal. Evitou internet, porque queria manter aquela atmosfera de neblina sobre as escolhas. Preferia o todo se revelando vagaroso. Não exibiu foto e pediu às pretendentes unicamente dados que ajudassem a vislumbrá-las. Sequer nomes solicitou. Recebeu uma, duas, três, quatro dezenas de cartas pela caixa postal. Até vir aquela. Enxergou ali arrebatamento.

A descrição do contorno dos olhos. A aversão ao cigarro. Eleitora do mesmo partido. Corpinho enxuto aos 43. Identidades literárias. Perfeita. Marcou encontro. Pediu, sabe-se lá se por fetiche ou superstição, que ela fosse de cigana. E convencionou: a que a surpresa se desnudasse reveladora, iria ele incógnito. Escolheu cheiros amadeirados, camisa moderna, sapato de loja. Pisou o primeiro degrau da choperia, rua nobre do bairro de Lourdes. Fim de tarde, o claro-escuro viajando ao rosto, tocou-lhe o sentido de dubiedade. Perscrutou o coração vagalumeando.

Entre as mesas, fez ar de periscópio, até avistar o vermelho dominando ao fundo. Se aproximou de mansinho. Ela de costas. Os dedos eram longos. Unhas insinuantes. Bateu-lhe a fragrância, e recuou como desse com a parede. Ela não!!! Por tudo que era sagrado, não ela. Conferiu em minúcias, buscou ângulos laterais. Estava arrasado.
De volta, foi hibernar no quarto, porta trancada. Vontade de engolir a chave. Madrugada alta, ouviu o trinco da fechadura na sala. Criou coragem. A mãe adentrando, exalava tristeza. Mais que isso: uma mágoa encavernando-lhe até os ossos. Ele a mirou, calado. Fez gesto de abraço. A acolheu, aninhou-se também. As roupas dele, claras, as dela, de cigana, enlaçando toda aquela coleção de contrastes. O silêncio costurando cada segundo paquidérmico que se abatia sobre eles. Feito lança trespassando os calcanhares do amor.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

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