sábado, 14 de março de 2015

Sujeito Zero (7)


* Por Sergio Vilas Boas


Exatamente por trabalhar muito é que à tarde Seu Edmundo se sentia cansado. As têmporas infladas latejavam. Também, isto é uma certeza minha, ele não se ajudava. Só comia feijoadas, rabadas, frango assado no barro; lingüiças e pés de porcos em feijão roxinho; chouriços, torresmos e ovos fritos talvez na banha; arroz-de-carreteiro ou baião-de-dois; no pão, só manteiga ou queijo mussarela derretidos; de sobremesa, suspiros e/ou doce de leite. Pouco ou quase nada de verduras, legumes e frutas. Fodam-se as coronárias, não é? À merda com essa frescura! Mas duvido que ele se defenderia com estas palavras.

Quando vinha o mal-estar, refugiava-se no banheiro da agência, local malconcebido, rarefeito de ar puro e de claridades. Da estreita janela, era possível ver apenas telhas de amianto cobertas de um lodo negro calcificado e paredes descascadas. Às vezes um gato preguiçoso invadia a lente.

Gotas de água vindas do dreno dos aparelhos de ar-condicionado dos andares acima iam virando gotículas ao longo da queda, chocavam-se contra a esquadria do basculante e deixavam na superfície do vidro um fresco suor. Mesmo ali, naquele espaço hermético, a metrópole rugia. Se Seu Edmundo fosse se ocupar de pequenos fenômenos, morreria de loucura, não de câncer.

No chão do banheiro da agência encontra um jornal com a seguinte manchete (de fevereiro de 1986): “Plano Cruzado revoluciona a economia brasileira”. Seu Edmundo apanha-o por necessidade. Entra numa das cabines do banheiro e senta-se sobre o sanitário. Abre o jornal nas páginas policiais. Não as folheia para se informar e sim para se ocupar.

Antes de começar a leitura das páginas vencidas, nota que a lâmpada do spot embutido no forro de gesso está queimada. Muda para uma cabine em que há luz, mas não encontra papel higiênico, e sim um car­retel com tiras do último puxão. Alguém entra no banheiro para estragar sua estratégia de descanso. Pretende que não reconheçam seus sapatos pelo vão entre o piso e a portinhola.

Seu Edmundo usou o mesmo modelo de sapatos - Vulcabrás 752 - a vida toda. Anualmente, comprava um par, mesmo sem necessidade. Organizava sobre o guarda-roupas as caixas em ordem cronológica de aquisição. Quando o uso do velho lhe parecia uma teimosia absurda, apanhava a caixa da vez, retirava o par novo e era só este, para tudo, até acabar.

Para não ser reconhecido pelos sapatos, suspendia os pés ridiculamente.  Antes de entrar na cabine ao lado, o intruso abre a torneira. Daí até girar o trinco e suspender a tampa do sanitário foi um intervalo breve. O sujeito suspira. Estavam os dois ali para nada, extraviados como o jornal esfacelado sob a pia. Haveriam de se cruzar qualquer hora dessas.

O sujeito estava fugindo do serviço ou simplesmente achava que o importante era ficar o maior número de horas possíveis à disposição dos superiores? Porque Seu Edmundo era assim. Seu ideal de lealdade consistia em chegar primeiro e sair por último. Era a forma mais apropriada de dar sentido ao cotidiano corporativo.

Como trabalhou na mesma agência bancária os últimos dezoito anos de vida profissional, em diversas funções – da mais elementar para alguma que exigia assinatura, mas sempre como escriturário –, conhecia todos os colegas. Morreu levando consigo as opiniões sobre cada um. Não abria a boca para elogiar ou difamar quem quer que fosse. Não ofendia nem se ofendia.

Ele sai da cabine, atira longe as páginas amarrotadas e começa a lavar as mãos com sabonete líquido ácido. Enquanto isso, na outra cabine, tudo se repete ao inverso, exceto o desenrolar do papel higiênico e o corte abrupto. A fivela toca o chão, zumbe o zíper fechando-se, os metais da fivela tilintam. Seu Edmundo fica na expectativa de que o intruso seja alguém disposto a conversar sobre qualquer assunto não-objetivo.

Abaixa-se para identificar o sujeito pelos sapatos mas este abre a porta da cabine repentinamente e o surpreende. Era Laerte, o novo gerente, o monstro que agora passa a encará-lo através do espelho posicionado no lado oposto às portinholas.
- Bom lugar pra se esconder do serviço, hã? (Diz o cara exibindo os dentes, enquanto ajeita a gravata apressado).

Depois abre a torneira, ensaboa a mão. Como sempre, não olha nos olhos do palerma do Seu Edmundo. Laerte desconsidera o escriturário Nível III, Referência 44. Além de inútil e dispensável, tem muito tempo de casa. Para Laerte, o que conta é a expressão contagiante, a ejaculação diária de idéias para impressionar mais do que solucionar.

Seu Edmundo, por sua vez, tampouco o fita, mais por medo que qualquer outra coisa. Transformava-se em cão vira-latas diante de toda autoridade constituída ou pressentida. Se surpreendido ou contrariado nos seus desejos mais infantis, atrapalhava-se todo, tropeçava em chão plano e liso, onde não havia obstáculos físicos.
- E a compensação de hoje, como anda? (Pergunta o cavernoso).
- Quase.
- Quase? Então, por que está aqui, fazendo hora? Desempaca, vá trabalhar.

Seu Edmundo enxágua o rosto, finge estar apenas de passagem. Arranca três toalhas de papel absorvente para se enxugar. Provocativo, Laerte apanha debaixo da pia as páginas vencidas do jornal, arremessa-as no lixo e sai, como se dizendo “essa porcaria não devia mais estar aqui”.

A porta do banheiro tranca-se com uma batida sibilina. Seu Edmundo recobra a cor. Sofre um arroubo de insatisfação que talvez tenha durado menos do que devia. Durante toda a vida foi incapaz de odiar, vingar ou peitar alguém. As plantas foram testemunhas oculares disso.

Sujeito difícil e imprevisível esse Laerte. Ele não conquistaria seu sonhado milhão nem em setenta anos de vida e cinqüenta e cinco de Carteira de Trabalho e Previdência Social assinada. Então por que tanta cobrança em relação a um homem prestes a se aposentar?

Seu Edmundo, claro, sempre quis se livrar do tipinho; de sua voz grossa e descompassada; da cara de cangaceiro corada; do nariz imenso e grotesco; das narinas vaporosas. A boca de Laerte engoliria uma bola de bilhar com folgas, como Miguel bem diz. E a cabeça ovóide, sem nuca. Cavernoso inumano!

Antes de atirar no lixo a toalha de papel que usou para enxugar o rosto, Seu Edmundo retira o jornal da lixeira e o coloca novamente sob a pia. Outro extraviado pode precisar, pensa. Ele tinha formas infantis de vingança. Seu maior medo era os colegas o flagrarem tentando (às vezes em vão) escapar do próprio casco, como os caramujos.

Restava-lhe concluir com dignidade a compensação do dia. Se (muita gente se desgraça por causa de um se) dependesse de sua von­tade – puts, como as coisas estão costuradas umas às outras, Alma! –, ele se pouparia do desprazer de cruzar com Laerte todo santo dia. O excesso de tolerância, por outro lado, pode arrasar. Pior do que ter sido sedentário, fumante desbragado e ex-alcoólatra, foi ser fujão.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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