terça-feira, 17 de março de 2015

Machado de Assis no papel de ombudsman


A importância de Machado de Assis para a incipiente imprensa brasileira do seu tempo, que então praticamente ainda engatinhava no País, está para ser devidamente resgatada e valorizada. Foi imensa! E não me refiro, apenas, ao conteúdo de suas crônicas e artigos. Estes, é até redundante destacar, eram bem escritos e, sobretudo, bem fundamentados. Enfocavam os principais fatos de então, além de mazelas e vícios dos principais personagens políticos, não importando se fossem da situação ou da oposição. No jornalismo que exercia, não tomava partido, embora, como cidadão, tivesse lá suas preferências.

Reputo como fundamental sua enfática defesa dos pilares que sempre deveriam nortear o bom jornalismo, que volta e meia eram (e são) deixados de lado. Dois deles são princípios que considero sagrados – como uma espécie de cláusula pétrea, imutável e irrevogável. O primeiro é a isenção na divulgação das notícias, sem “puxar a sardinha” para nenhum dos lados. Compete ao repórter justificar o verbo que define sua função: “reportar”. Ou seja, reproduzir, fielmente, o que vê e ouve, sem omitir e nem falsear o mínimo detalhe, e sem fazer nenhuma espécie juízo a propósito. O segundo princípio, não menos importante, é sempre, sem exceção, ouvir a outra parte envolvida. Não era assim que se fazia jornalismo na época de Machado de Assis. Não é assim que se faz jornalismo nos tempos atuais. Lamentável!

Os jornalistas da segunda metade do século XIX – e os deste século XXI – agem, salvo exceções, como se fossem “oráculos dos deuses”, que tudo soubessem (ou sabem) e tudo pudessem (ou podem). E a imensa maioria dos leitores confere irrestrito crédito a tudo o que lê – ou vê ou ouve, dependendo da mídia – agindo como se isso fosse sempre “infalível”, a mais lídima expressão da realidade. Claro que nem sempre é. Parodiando Machado, quando se refere à política, é oportuno lembrar que “jornalismo é obra de homens”. E estes são sujeitos a enganos, contradições e interesses pessoais nem sempre justos ou lícitos. Não me oponho, óbvio, a opiniões (que é o que mais fiz e faço em minha profissão) desde que quem opine deixe claro que seu texto não se trata de informação, de notícia, mas de sua visão pessoal sobre determinados fatos, pessoas ou organizações de que trata. Nem sempre isso é explicitado. Aliás, pelo contrário

A postura ética de Machado de Assis, enquanto jornalista, ficou patenteada na questão que mobilizou toda a opinião pública nacional em fins do século XIX: a Guerra de Canudos (1896 e 1897). Enquanto a imprensa toda, sem exceção, demonizava Antonio Conselheiro e seus seguidores, ele nadava contra a correnteza nesse caso e questionava a veracidade de tais avaliações. Criticava, entre outras coisas, o fato de nenhum jornal enviar para o local dos acontecimentos nenhum repórter, limitando-se a reproduzir ora versões oficiais, logicamente contrárias aos rebeldes, ou meros boatos que circulavam distantes do cenário do conflito.

Por sua influência ou não, finalmente um jornal, e paulista, destacou alguém para cobrir, “in loco”, a rebelião. O “Estado de São Paulo”, enviou para Canudos uma espécie de “multitarefas” (era, simultaneamente, engenheiro, militar, físico, naturalista, jornalista, geólogo, geógrafo, botânico, zoólogo, hidrógrafo, historiador, sociólogo, professor, filósofo, poeta, romancista, ensaísta e escritor. Ufa!). Refiro-me a Euclides da Cunha. Aliás, da série de reportagens que ele fez, emergiu um dos grandes clássicos da Literatura brasileira, ou seja, “Os sertões”. Não questiono a exatidão dos dados trazidos à baila por tão qualificada testemunha.

Todavia, concordo com o que escreveu o professor e jornalista Marcos Fabrício Lopes da Silva em detalhado texto que publicou em 6 de setembro de 2005 no site do “Observatório de Imprensa”, em que observou, em determinado trecho: “Euclides retratou Antônio Conselheiro como personagem trágico, guiado por forças obscuras e ancestrais e por maldições hereditárias, que o teriam levado à insanidade e ao conflito com a ordem. Viu Canudos como desvio histórico capaz de ameaçar a ‘linha reta’, que se ligava ao conceito linear e evolutivo de história, adotado por positivistas e evolucionistas, que acreditavam no aperfeiçoamento progressivo do homem e da sociedade”. Ou seja, na contramão do que Machado de Assis pensava sobre esse trágico e até hoje pouco conhecido personagem e suas motivações.

O então consagrado escritor detectou (e condenou acerbamente, com todas as letras) o sensacionalismo da imprensa na cobertura desses acontecimentos. Em um tempo em que sequer se cogitava na criação da figura de um “ombudsman”, exerceu esse papel, criticando, inclusive, o procedimento do repórter do próprio jornal de que era sócio, a “Gazeta de Notícias”. Denunciou a manipulação da opinião pública movida pela propaganda do governo exercida pela totalidade da imprensa, provavelmente de olho nas benesses oficiais, em detrimento da verdade. Para ele, conforme enfatiza Marcos Fabrício Lopes da Silva, “um dos lados estava sendo bastante ouvido: o governo, enquanto a voz de Canudos não era sequer escutada. Machado de Assis critica o estilo ‘rápido e rasteiro’ que marcou a cobertura jornalística a respeito dos acontecimentos ocorridos na mais estéril região do semi-árido baiano”. Este é, como se vê, assunto que tende a render inúmeras observações e constatações.

Boa leitura.

O Editor.

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