terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Presságios


* Por Assionara Souza


Antes do tempo estou lá, à espera. À espreita de uma realidade hipotética. Os dados jogados no tabuleiro. Previsibilidade dentro do imprevisível. E o que pode acontecer é não acontecer. Dirijo-me cegamente ao imprevisível. Mil pensamentos antecedem o talvez. Imaginar antes é uma inútil ansiedade. Imaginar olhos e mãos escrevendo uma dedicatória no livro comprado em usados: "Que a literatura jamais contamine o seu amor". Imaginar depois uma viagem para um país distante do país Brasil é tristeza e saudade e vontade de reter o que já escapou. Tudo é instável dentro do avião.

A criança ao meu lado baba o ombro esquerdo da mãe com a ansiedade dos dentes por nascer. No tempo em que ela afasta e aproxima a boquinha vermelha, uma mosca pousa e distancia-se do local repetidas vezes. A mordida molhada e sem dentes não é uma sensação que percebo e gosto. Por causa da mosca. Mas quem estivesse de frente para a mãe, perceberia somente sua boca aberta recebendo das mãos do marido um comprimido como se uma hóstia. A mãe parece infinitamente triste. A criança vai crescer e certamente não estará pronta para receber o amor cego do mundo tanto quanto está agora. O tempo é velho e sem mãe. Não ama.

O garoto na poltrona ao lado veste verde e tem vontade de entender porque tanta solidão numa só tarde. Distrai-se com eletrônicos que não trazem qualquer alegria e acentuam mais ainda a ansiedade. A realidade provisória. Se houvesse música seria possível deslizar. As vozes perpassam umas as outras sem peso, como pequenas mariposas que circulam na luz do poste em frente à casa simples em que os pais do garoto nasceram. Insetos fadados à morte breve e sem memória.

Os dados caem no pano verde da mesa. Vejo chegar a imagem que temo sempre. O espaço se imobiliza. A imagem tem muito poder. E tem muito sentido. Além das vozes. Além das outras visões. Move-se diante dos meus olhos. O meu olhar é insuficiente. A imagem chega e tem forma e pensamentos. A geometria dentro da aeronave se reconstrói. O momento está a ponto de ser gravado. Os meus sentidos fazem o cálculo da imagem. Lembro que na mesma tarde falei ao telefone com a amiga. Lembro que a fragilidade comoveu meu coração. Cortar delicadamente o corpo para que se tenha a impressão de que tudo foi feito para evitar o pior. Cortar e ver dentro da carne se não há ali algo que possa crescer e impedir planos futuros.

Tenho diante dos olhos a imagem. A imagem me corta com sua lâmina de ausência. Fere a carne de meus pensamentos e desmorona um cenário preparado com antecedência. De repente sombra. E de repente nuvens densas. Não mais córrego e sim ferrugem de encanamento antigo. Sou a água escura que desce obediente ao comando de uma qualquer torneira aberta.

Lembro que a voz da amiga pareceu frágil e forte na mesma proporção. O que eu quero da imagem não depende de mim. Não depende porque não tenho a chave. Não depende porque a palavra é menos que corpo. Não depende porque tudo à volta continua indiferente a minha vontade. Tudo à volta é indiferente ao que eu chamo de realidade.

Na sala de cirurgia, um médico jovem prepara-se. Uma foto, por favor, para usar no filme da formatura! A mãe é séria e não sorri. Espanta-se com a mosca morta no canto da boca da criança. Minha cabeça oscila entre o lado interno e externo da imagem. Não faz sentido fingir que não presenciei a cena. A seqüência é simples. Uma vida pessoal escorrendo por um cano insignificante de toda a grande tubulação. Uma vida pessoal que pode viver sem o luxo da opinião alheia. E que não deixa de sentir nem por um dia o sol e o vento e o frio e a chuva. E se emociona apesar de toda a estrutura indiferente ao seu redor.

A narrativa dessa vida pessoal é flagrada por mim. O jovem médico dentro do tempo marcado abriria a carne na altura do coração onde a realidade é mais sentida. Nunca aceitei que rissem de coisas tristes. Nunca suportei estúpidos julgamentos. Eu diante da imagem que parecia para mim ter a força de um presságio. E por isso me atingia por dentro como um corte na carne anestesiada.

Tento me concentrar no fluxo do tempo que corre por fora. E retribuo a mudez do olhar. Penso que sou todos os que passaram por mim. E a realidade é essa conexão do que está fora: enquanto eu olho a imagem; e do que está dentro: presságios. O corpo na mesa de cirurgia. Fecho os olhos. Estou do lado de fora. O barulho intenso e a velocidade existem sem mistificação.

* Escritora


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