quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Na boca do dia

* Por Mara Narciso


Uma boa estampa fácil nos engabela. Difícil é encontrar respeito ao imperfeito numa sociedade movida à beleza. Uma vez o primo Júnior teve sua participação questionada no desfile de sete de setembro do Colégio São Norberto, onde estudava. Alguém não gostou de vê-lo na rua entre os estudantes, e queria vetá-lo. Quis esconder o diferente, no caminho inverso do que a mãe dele construiu: “eu o preparei para viver da porta para fora, pois aqui dentro é só amor”.

Quão idiotas os médicos podem ser. Quando o meu primo e amigo José Geraldo Mendonça Júnior, conhecido literariamente e alhures como Penninha Júnior nasceu frágil como um passarinho, com a cabeça desproporcional (um grande cérebro), e os músculos mal desenvolvidos, com propensão à consequentes alterações esqueléticas devido à fraqueza, a medicina disse que as suas características eram incompatíveis com a vida, que não andaria e morreria logo. A minha obstinada Tia Ninha, desafiada, contra-atacou, e através de massagem com mãos besuntadas de óleo construiu cada fibra muscular do seu filho. Júnior crescia rápido, e a orientaram para que o colocasse num molde de gesso, um artefato acolchoado com algodão, para dormir. A força muscular foi se desenvolvendo de forma lenta.  Conseguiu firmar o pescoço precariamente, depois o tronco, sentou-se, arrastou-se e afinal, aos cinco anos, andou.

Em sua casa tinha piscina, escola de judô, e muito amor. Suas limitações físicas foram vencidas pela grande vontade de crescer, avançar, libertar-se, não se deixar aprisionar por meros muros da mobilidade ou do preconceito, este bem mais difícil de derrubar. Confiava em si, tinha coragem, otimismo, e sonhos que ninguém conseguia segurar. Em busca dos recursos, esteve diversas vezes no Hospital Sara Kubitscheck de Brasília para tratamento ortopédico. Suas mãos e pés frágeis foram operados, ainda menino, e a coluna, quando tinha 16 anos. Devido à fraqueza muscular, a sua coluna vertebral formou um “esse” que comprimia pulmões e coração, ameaçando sua sobrevivência. Foram feitos quatro furos em sua calota craniana, e também nos joelhos e um terrível objeto de tortura teve lugar. Foi esticado a ferros. Quando ele viu a minha mãe Milena e a dele Nininha, ao seu lado se desesperarem, num hospital em Belo Horizonte, mostrou Cristo crucificado na parede, e pediu para que elas parassem com aquilo, pois ele tinha remédios contra dor para tomar, e Ele não tinha.

A cirurgia de colocação de uma haste de metal em sua coluna teve sucesso, e o deixou livre para morar sozinho em Belo Horizonte, ocasião em que começou a fazer poemas numa máquina de escrever. Sua poesia concreta rendeu muitos versos e um livro chamado “A parte do todo”. Empolgado com a repercussão do seu trabalho (publicação recente), que tinha começado entre os pioneiros do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, que completará 30 anos em 2016, estava organizando o seu segundo livro, cuja capa Fernando Yanmar Narciso tinha produzido. O nome da obra seria “Na boca da noite”.

Amante das coisas boas, Penninha era um homem de paixões profundas e convicções quase dogmáticas. Cruzeirense completamente azul tripudiava dos atleticanos com seu famoso “Datapenna” do Facebook, anunciando os gols feitos contra o Atlético. Petista histórico, não abandonou o barco nem nos piores momentos. Manteve suas idéias esquerdistas, abraçando-as sem medo, ainda que isso lhe custasse rusgas nas redes sociais e ruptura de amizades. Nas reuniões políticas, com um microfone, não deixava de se posicionar, com inflamados discursos com conhecimento de causa política e econômica.

Obcecado pela musculação, praticou os exercícios quase todos os dias da sua vida, no afã de não se atrofiar e poder viver. Louco por Montes Claros, pequi e tradições, era aficionado das Festas de Agosto, especialmente dos catopês. Foi presença constante no cenário cultural da cidade. Os limites físicos não obstruíram seu mundo amplificado pela internet, espaço invadido por ele desde os primórdios. Ainda que tivesse mãos pouco habilidosas, digitava e teclava qualquer aparelho, por mais delicado e pequeno que fosse. Sob todos os aspectos era um amante da mulher bonita e da música regional. Enxergava longe, fazia contatos virtuais, não se intimidava, indo buscar novidades onde elas estivessem. Foi agente cultural, trazendo cantores a Montes Claros para shows e participação em programas de rádio. Teve poemas musicados e o Programa Nossa Arte Nossa Gente, da Rádio Unimontes é a sua cara. Na hora de anunciar o fim, Alex Tuta diz: “Que Penninha!”

Economista por formação (Unimontes sem cotas), e servidor público estadual concursado, trabalhou por 15 anos no Hospital Universitário Clemente de Farias, HU, no setor de humanização. Organizou festas, visitas, palestras motivacionais e shows musicais, para construir novos cidadãos. Uma semana depois de completar 56 anos, uma infecção pulmonar levou o doce poeta às seis horas da manhã, na boca do dia 11 de fevereiro, ele, que tinha aniversariado no dia 4.

Sem ele, o Facebook perde a graça. Quem vai falar bem do Governo? Sua morte muito comentada recebeu textos, elogios, poemas, frases, fotos e publicações, mostrando sua imensa estatura poética e humana. Há muito venceu críticas e restrições. Pela psicanálise, subiu num caixote de puro amor-próprio, e de lá olhou o mundo cego, que em parte o hostilizava. Tinha a certeza de que, para quem tem coragem, não ser perfeito é um detalhe. Superar-se é o que importa.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

Nota do Editor:

O poeta, o ser humana, a magnífica e exemplar figura de Penninha Junior nos deu o privilégio e a honra de ter sido colunista fixo do Literário. Brindou-nos, por um período de seis meses, com vinte e cinco dos seus maravilhosos, sensíveis e inteligentes poemas. Ficará, portanto, para sempre gravado no coração e nas mentes dos seguidores e dos leitores deste nosso espaço voltado à Literatura. Afinal, como Guimarães Rosa escreveu um dia: “os poetas não morrem: Ficam encantados!”.  


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