sábado, 21 de fevereiro de 2015

Arte e tecnologia


* Por Carlos Chagas Filho


"A Física do Universo é a base da criação humana". LE CORBUSIER - Nos Moyens


O estudo da influência da ciência sobre a arte no século XX revela, de início, a dificuldade que teve o homem moderno para integrar a ciência ao domínio cultural e considerá-la - bem como suas aplicações - qual nova expressão do pensamento, seja como instrumento de cultura, capaz não somente de aumentar o alcance da ação humana e a sensibilidade do homem, mas também de servir como intermediário útil entre o artista e a natureza que serve de fonte à criação, compreendendo-se nesta a própria abstração, que no fundo é o resultado da assimilação de experiências múltiplas.

Todavia, para estudar a influência referida deve-se considerar não só a do pensamento científico como a da técnica. Para fazê-lo, será necessário começar pela que foi exercida indiretamente, a qual precedeu a contribuição direta trazida pela técnica à criação artística.

Assim fazendo, percebe-se que desde as primeiras grandes realizações técnicas do século XIX, tais como a locomotiva e o navio a vapor, alguns artistas já se haviam inspirado nesses novos elementos renovadores da evolução social para a realização de suas obras de poesia, pintura e música, mas é necessário chegar-se à segunda década, ou quase, do século XX, para que a transformação do pensamento criador seja definitivamente estabelecida, e que a ele venham incorporar-se os elementos fornecidos pelas ciências, que haviam evoluído paralelamente, a princípio com lentidão e depois quase que explosivamente.

Evolvendo paralelamente, arte e ciência não se poderiam encontrar. Assim, não poderia ser reconhecido antes o elemento estético da "máquina". Representava então a técnica uma atividade utilitária, de caráter ancilar, não podendo pretender por si mesma reivindicações estéticas. Basta apontar, em apoio desta afirmação, que os construtores das invenções que produziram a revolução industrial tiveram necessidade de sobrecarregá-las com ornamentos, os quais correspondendo à arte figurativa do século XIX, parecem-nos hoje infantis e, ao mais das vezes, ridículos. Foram eles apostos para tornar as máquinas mais aceitáveis aos olhos do seus usuários, segundo os critérios convencionais da sociedade da época, cuja estrutura iria, aliás, sofrer modificação radical, provocada por essas mesmas invenções.

A separação entre arte e técnica é, porém, a expressão da existência de duas maneiras de pensar, e reproduz, na verdade, o desprezo mantido pela grande maioria das classes sociais, em relação à segunda. Impediu ele que esta se apresentasse sob as formas que lhe vêm de sua própria estética, e que viriam depois influenciar vigorosamente a arte de nossos dias.

Pode-se admitir que foi a arte moderna - cuja característica principal é o despojo e a supressão de todo excesso, seja pela redução do objeto às formas imanentes à sua natureza, seja pela representação de idéias por massas - que veio na sua fase inicial buscar inspiração na ciência. A nova arte reflete, sem dúvida, a unidade que as concepções da ciência moderna - sobretudo da física dos quanta, da relatividade da geometria não-euclidiana - deram à interpretação da natureza.

Mas ainda, o artista moderno, na sua interpretação do homem, passou a procurar nele as formas comuns à natureza, provavelmente porque sentiu que as leis da mesma, consideradas até o fim do século XIX como aplicáveis somente ao mundo dos objetos, se mostraram válidas para a interpretação dos fenômenos vitais.

É neste contexto que deve ser considerada como fundamental a eclosão do cubismo. Nele, a impressão estética é procurada, não mais pela associação da forma geométrica à cor, podendo ambas ser submetidas às leis pelas quais o homem descreve o mundo exterior.

Duchamp vai mais além; a sua pintura traz, como elemento criador de impressão estética, a interação de formas vivas e de máquinas, antecipando assim alguns aspectos da pintura surrealista, e provando não somente que a ciência tornara-se um fio condutor do pensamento artístico, mas também, e sobretudo, que os dados de documentação científica, os instrumentos que o cientista usa, bem como os produtos da aplicação da ciência, compreendem elemento estético espontâneo, neles mesmos integrados.

Esta integração encontra provavelmente a sua mais dramática a expressão na escultura de Brancuse, no período entre as duas guerras. Como o assinala Louis Munford, o inspetor aduaneiro norte-americano que quis cobrar imposto alfandegário de suas obras, como se fossem máquinas, realizava, sem o saber, uma interpretação justa do poder criador do artista. Deveria ela ser considerada, na verdade, como um elogio.

A reação a esta nova era de criação artística foi violenta. Foi ela representativa de uma classe social que se sentia ameaçada, e estendeu-se por toda parte. A vigorosa repulsa do público, durante a primeira representação de Pelléas et Mélisande, reflete um sentimento generalizado que teve ainda maior expressão no domínio da pintura, como o indicam as dificuldades que encontrou a Galeria Sezession, de Viena, primeiro museu da pintura chamada moderna, e as manifestações hostis a Picasso, Braque, Léger e Miró.

Bem mais tarde é que se encontra o exemplo mais ilustrativo da integração da ciência à arte. São os "mobiles" de Calder. Cria-se neles, intuitiva ou explicitamente, a expressão estética de uma arte originária das leis elementares da mecânica física, eliminando por conseguinte todo o supérfluo. A obra de Calder é por isto muito superior a certos ensaios posteriormente feitos.

Pode-se, pois, dizer que o espírito científico de nossa época se integra definitivamente no movimento de criação artística.

É desnecessário assinalar que a criação artística não sofre somente a influência dos métodos científicos. Muito mais do que isto, a integração da ciência à arte deve-se ao fato (acentuado por muitos críticos) de que não podemos mais compreender ou interpretar o meio em que vivemos, e dele tirar os elementos de criação - mesmo aqueles que refletem uma contradição rude à ordem, à harmonia e à beleza convencional - sem que a eles associemos as modificações introduzidas pelas concepções libertadoras que a ciência trouxe à cultura.

Às deformações introduzidas conscientemente na pintura ou na escultura, sublinhando por exemplo o desequilíbrio de massas, são conseqüência do fato de que, ao conquistar a natureza, o homem não se sente mais obrigado a descrevê-la como seu escravo. Da mesma maneira, a beleza dos "mobiles" advém do fato de que neles se sente a profunda ligação de seu movimento a regras, intuitivas para alguns, é bem verdade, mas suscetíveis para outros de uma representação física, e até mesmo de uma formulação matemática.

Representam, em suma, a beleza que admitimos existir no movimento dos átomos.

A integração de elementos científicos à cultura atinge intensidade cada vez maior. Em conseqüência, certas expressões utilizadas no domínio científico são incorporadas ao das artes, perdendo naturalmente sua significação primeira para adquirir uma outra.

Talvez seja importante ressaltar este fato, quando procuramos mostrar a influência da ciência e da técnica sobre a arte. É o caso, por exemplo, das chamadas "experiências" artísticas que, na realidade, não possuem a significação das experiências científicas. No caso destas, partindo-se de uma hipótese fundamentada em geral em teorias, ou na observação de um fato, chega-se à sua confirmação, modificação, ou à sua negação, ou então à formulação de nova hipótese, que pode dar origem a nova teoria. A experiência chamada artística, ao contrário, é, na maioria dos casos, uma tentativa de obtenção de nova forma de expressão que a justifique, ou de uma reação psico-sensorial diversa.

Pode-se, pois, afirmar que a integração do pensamento científico à cultura moderna modificou as perspectivas da criação artística. Sua contribuição, que até o século XX se limitava a fornecer aos artistas os instrumentos necessários para a realização do respectivo trabalho, tornou possível novo desdobramento do espírito criador, e desempenha papel essencial na eclosão de novas formas de expressão.

[...]

É o caso da música, onde à possibilidade de utilização de instrumentos eletrônicos se junta a da criação eletrônica propriamente dita, que já superou o simples quadro da experiência de avant-garde. Aqui também, depois de uma fase onde a técnica serviu somente de instrumento auxiliar, torna-se ela o trampolim necessário para um salto decisivo.

Esta verificação mostra as perspectivas do futuro. Nele desabrochará uma nova forma de arte, plena de manifestações multidisciplinares, nas quais o som e a forma, o movimento e a cor, se combinam para criar um novo "ato estético".

Sem bem que iniciativas tais como as do poema eletrônico de Le Corbusier, que se enquadra nestas atividades multidisciplinares, sejam ainda raras, outras mais discretas começam a aparecer pouco a pouco, as mais das vezes com grande êxito.

Não será necessário acentuar que estas iniciativas têm encontrado uma reação vigorosa, que não se limita unicamente ao público não esclarecido. Na verdade, assim tem sido para vários dos progressos técnicos incorporados à criação artística, até mesmo em círculos onde não seria de esperar que isto se produzisse. É espantoso, por exemplo, ver que o maior gênio do cinema - na verdade um dos maiores artistas de todos os tempos, Charles Chaplin - hesitou durante anos a fio para finalmente incluir o som nas suas fitas cinematográficas. Entretanto Tempos modernos é, sem contestação, uma das maiores realizações de arte de nossos tempos.

Mas a tendência da arte moderna em produzir efeitos combinados exige um poder de criação muito mais forte do que a arte monodisciplinar. Daí o seu atraso.

Os elementos que a técnica pode fornecer para tanto acabarão certamente por convencer os que vigorosamente contestam o seu valor.

De qualquer forma, cabe à técnica responsabilidade ímpar. Posta ao serviço do artista, deve ela facilitar-lhe simultaneamente o aperfeiçoamento de seus instrumentos e a criação de um mundo novo, o que permitirá manter, segundo a expressão de Le Corbusier, a chama dos valores eternos.

É para este duplo objetivo que se volta a formação do artista moderno: dominador das técnicas, e não seu escravo, terá ele de utilizar, para uma nova estética, cuja significação independe das condições quase inumanas em que se desenvolve a era tecnológica, os instrumentos que esta lhe pode fornecer.

Documento de trabalho para o Colóquio "Arte e Tecnologia". Tiflis, abril de 1968.

(O minuto que vem, 1972.)


* Médico, professor, cientista e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras

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