quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Way of life


* Por Marcelo Sguassábia


Frankfort, McKinsey Street, 609. Um “Donaldson” pintado a mão em letra serifada na caixa de correio. Dentro, uma proposta de assinatura de Seleções e outra do Saturday Evening Post. É claro que a casa é em estilo clapboard, como todas as outras a léguas ao redor. Dois pavimentos, sótão, nada de muro na frente. Mais tradicionalmente norte-americano que isso, só se for isso no Dia de Ação de Graças. E é.

A paz reinante parece tão inabalável quanto a liquidez das companhias de seguros e das ações da Pan Air. Talvez o mais fiel retrato dessa mansidão seja o pequeno Carl, que tem sua atenção dividida entre os bonecos do Forte Apache e um gigantesco pote de sorvete sabor baunilha. A televisão está ligada e uma garota-propaganda apresenta uma nova marca de cereal de milho, seguida por uma chamada para o Ed Sullivan Show.

Father na sala de estar de dois ambientes e seu costumeiro bourbon whiskey das manhãs de sábado. Serve de porta-copos uma edição capa-dura de “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do velho e bom Dale Carnegie. Ninguém no Estado de Kentucky poderia adivinhar onde estaria seu pensamento agora. Nas metas da empresa para 1958, no sonhado rancho em Sunset Village, nas pernas bem torneadas de Jeannie Johnson. A mulher que jamais teria, melhor amiga da esposa. An affair to remember, canta Nathaniel Cole na eletrola pé-de-palito RCA Victor, relembrando o caso que não houve.

Há uma cerca a pintar, galhos a podar e grama a cortar no jardim da frente. Ben, o filho mais velho, está aí para isso mesmo. Lucille Huppert, da Associação de Moradores, se aproxima com seu basset na coleira. Troca com Ben um olhar mais cúmplice do que o que seria moralmente tolerado entre uma respeitável balzaqueana de 38 e um rapazinho de 17.

Na casa em frente, um certo Jim Bob observa com o binóculo Peggy Sue ao espelho, ajeitando o sutiã. Dessa vez aquele trouxa do Edward avança o sinal, ah se avança. Ou não me chamo Peggy Sue!, pensa a líder de torcida, fazendo caras e bocas.

A América laboriosa e protestante recende a estrógeno e testosterona nos escritórios e high schools, nas ruas e parques de diversões. A mesma América que não hesita em ir à guerra pelas tradições que finge cultuar.

Mamãe arregimenta o marido e a prole para o almoço festivo, badalando o sininho de bronze dos tempos da matriarca Katherine. É servido o peru de Thanksgiving, guarnecido por rodelas de laranja.
- A asa não. A asa é do papai, Carl!

Sim, dê-me asas. É só o que quero nesse momento, pensa o pai enquanto diz:
- Querida, sempre tão gentil. Tudo bem, Carl, pode ficar com a asa. Acho que hoje vou preferir a sobrecoxa.
- Mommy, estão batendo na porta.
- Quem será? Agora que íamos começar a comer...

Lá fora Mary Reynolds aperta mais uma vez a campainha, passa um lenço umedecido nos cabelinhos da nuca, ajeita a blusa para dentro da saia e saca da bolsa a edição de Natal do catálogo de cosméticos. Meio-dia e meia, o sol nunca esteve tão forte nessa época do ano, mas ninguém é próspero o bastante para deixar de prosperar, ainda que seja sábado na maior economia do mundo.

É Avon que chama. É mamãe que atende com um sorriso nos lábios e um convite para entrar.
* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. A maneira de viver dos americanos em 1958 está, em palavras, mais ortodoxa do que caixa de Maizena. Parabéns!

    ResponderExcluir