sábado, 17 de janeiro de 2015

Incessante conflito

A vida, esse fenômeno maravilhoso – até aqui detectada, apenas, em nosso planetazinha azul (embora se suspeite, posto que sem provas, que exista em profusão em tantas outras partes do universo) – é caracterizada por incessante conflito. O desejável seria que se caracterizasse pela cooperação, mas não é. Algumas espécies fazem o papel de presas de outras, que são, por seu turno, suas predadoras. E isso em todos os casos, sem exceção. Os seres que não são carnívoros se alimentam de vegetais, que também são espécimes vivos. Conclusão: Vida só se alimenta de vida. Disso não há como fugir. Não conheço uma única espécie do reino animal que se alimente de minerais. Não existe.

O homem é, simultaneamente, predador e presa. Mais o primeiro, evidentemente, do que o segundo. O fato de contar com habilidades únicas (ditadas pela razão) faz com que tenha criado armas e desenvolvido as mais diversas formas de se proteger de eventuais agressores. Todavia, caso se descuide, pode, perfeitamente, se transformar (e muitas vezes se transforma mesmo) em “comida” de vários predadores, como tigres, leões, jacarés, tubarões etc.etc.etc. Ademais, a despeito de sua inteligência, está, o tempo todo, na mira de seres invisíveis a olho nu (vírus e bactérias), sempre à espreita para adoecê-lo e, afinal, matá-lo. Raros de nós escapamos da sua sanha destrutiva (se é que alguém escape). Mais cedo ou mais tarde, ao menor descuido, somos afetados por desarranjos orgânicos, a que damos o nome genérico de “doenças”, que nos suprimem a vida.

Admito que este raciocínio é sombrio e mórbido, posto que rigorosamente realístico. As coisas no mundo ocorrem inexoravelmente desta forma, não há como negar. Queiram ou não, a vida é contínuo conflito, tanto entre espécies, quanto entre nós, humanos. No homem, tomado individualmente, há, igualmente, batalha contínua, entre seus próprios instintos, sobretudo entre os dois básicos: o de sobrevivência (individual e da espécie) e o de destruição (própria ou de terceiros). O “pai” da psicanálise, Sigmund Freud, tratou muito bem desse conflito, sobretudo no livro “O mal-estar da civilização”. Identificou dois princípios antagônicos, ou seja, as pulsões de vida e de morte, que denominou, respectivamente, com os nomes de duas figuras mitológicas da Grécia clássica, “Eros” e “Thanatos”.

O tema é, também, fartamente explorado em Literatura, sob aspectos vários, em geral metafóricos, sobretudo em poesia (embora não só nela). Pudera! Os escritores não iriam perder um filão tão farto, não é mesmo? Eu mesmo aventurei-me por esse vasto campo temático. Tanto que o meu livro mais recente, concluído há questão de semanas, tem o título de “Eros e Thanatos”. Nele, apresento as trajetórias de um grupo de escritores, dos mais conhecidos e consagrados, que amaram muito, foram por uma razão ou outra infelizes no amor e... deixaram-se levar pelo instinto de destruição. Deram cabo das próprias vidas, vencidos pela sanha destrutiva de “Thanatos”. Mas o tema é mais comum na poesia. A propósito, navegando na internet, encontrei este belíssimo poema, intitulado “Eterno pensar eterno querer”, de autoria de Adriana Muller, que faço questão de partilhar com você, paciente e fiel leitor:                  

“Thanatos e Eros brigam pelo meu corpo
Ambos querem minha posse
Minha psique atormentada
Acomoda-se e adormece
Embebida no desejo do desejo esquecer
Sonhos vem a mente
Sonhos de momentos ardentes
E da tristeza que quero esconder
Morrer talvez fosse à saída
Pois enquanto houver em mim
O menor sopro de vida
Continuarei a pensar em você”.

Outro poema pertinente (posto que com a ausência de “Thanatos”), encontrei na obra do prolífico poeta português Fernando Pessoa. Seu título é “Eros e Psique” e diz:

“Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia”.

Poderia citar, ainda, muitas e muitas outras obras literárias e respectivos autores, que trataram da guerra contínua entre Eros e Thanatos, mas não o farei, até por falta de espaço. Quem sabe, oportunamente, as traga à baila, mas em outra ocasião. Por ora, deixo-lhes, a título de sugestão para reflexão, esta realidade: a vida é mais frágil e efêmera do que ousamos aceitar. E se constitui (infelizmente), antes e acima de tudo, em incessante conflito.

Boa leitura.


O Editor.

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