sábado, 24 de janeiro de 2015

História do Bicho-Papão


* Por Urda Alice Klueger


Tenho uma sobrinhazinha chamada Alice, que mal fez três anos, e que parece toda feita de doçura (e de safadeza). Outro dia ela perguntou:

- Mãe, o Bush sabe onde a gente mora?

- Não, não sabe.

- Mas a gente sabe onde o Bush mora, né, mãe?

- Sim, nós sabemos. Por que?

- Porque se nós quisermos, nós podemos ir lá e matar o Bush. Mas como ele não sabe onde a gente mora, ele não pode vir aqui e matar a gente. E se ele vier, o vovô Ézio tem uma espingarda, né, mãe?

Quanta diferença da minha tenra infância, quando a minha grande amargura era por conta dos maus-tratos que o Patinho Feio recebia dos cisnes!

Daí contei esta história para a minha amiga Ivone, que tem um priminho que costuma levar jogos de computador para jogar no computador dela. Confesso que sou uma total ignorante em jogos de computador, mas a Ivone me disse que o priminho dela luta e luta com enorme desespero diante da tela. Outro dia ela perguntou para ele:

- Por que é que tu lutas tanto assim?

Aí a resposta inesperada:

- Porque eu tenho que matar os estadunidenses!

Ela, admirada, quis saber mais:

- Mas por que queres matá-los?

- Porque eu tenho que aprender a me defender. Então tenho que matá-los.

Então lembrei de mais uma amargura da minha infância, das maldades que a madrasta fazia com a Gata Borralheira.

Acho que é bem diferente a gente chorar por causa de uma Gata Borralheira que acaba virando Cinderela, ou por causa de um Patinho Feio que acaba virando Cisne. As nossas crianças de hoje se assustam e temem violência de bombas que transformam crianças iguais a elas em pequenos seres ensangüentados e mortos, sem nenhuma das glórias mágicas das Cinderelas e dos Cisnes. Sabe-se lá que medos que corroem a pequenina alma da nossa Alice, para ela se preocupar em saber se o Bush sabe onde ela mora! E vivemos cá tão longe da Palestina, do Iraque...

Desde que Alice nasceu, diversas pessoas morreram em nossa família, pessoas que morreram de mortes dignas, rodeadas de entes queridos, e que tiveram velórios cheios de gente amiga, e enterros cheios de dignidade, mas Alice não chegou a ver nenhum desses mortos. O morto mais próximo dela é o Nestor, um peixinho que ela tinha e que um dia amanheceu morto. Ela sempre se lembra do Nestor. Acho que um pequeno morto como Nestor é uma boa carga para uma menininha de três anos. No entanto, ela faz perguntas sobre poder matar Bush, e teme que Bush a encontre. Que mundo é este em que um Bicho-Papão lá de outro hemisfério consegue aterrorizar crianças que apenas agora começam a espiar para o mundo? Que sementes que aquele Bicho-Papão está plantando por todos os cantos, e que resultam em medos e angústias até nas pequenas Alices que vivem a tantos milhares de quilômetros de distância dele?

O Bicho-Papão que se cuide! Toda essa criançada, qualquer dia, vai ser grande!

Blumenau, 29 de Maio de 2003.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).


Um comentário:

  1. Os medos se tornaram bem maiores que os nossos de antigamente. E agora é a "crise hídrica".

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