quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A culpa nossa de cada dia


* Por Raquel Castro


Quando estava na faculdade, uma professora, comentando a poesia de Adélia Prado, disse que carregávamos a culpa pela morte de Cristo. Naquele momento me senti ofendida, pois eu não me sentia culpada pela morte de ninguém, ainda mais a morte de Deus. No meu raciocínio, eu não podia carregar uma culpa pela qual eu não era responsável. Ela respondeu que ontologicamente toda a sociedade judaico-cristã ocidental vive sob o signo da culpa e que isso independe da nossa aceitação. Na hora, eu não compreendi, estava mais preocupada em negar. Já havia ouvido aquilo pelo menos outras duas vezes, de Nilton Bonder e Zigmunt Bauman. O primeiro um rabino, o segundo um sociólogo ateu. Mas nunca soube, de fato, o que era viver sob a culpa cristã, até esse momento. Não é que eu não compreendesse a ideia, é que ela me dizia muito pouco, pois eu não a reconhecia. Só agora, depois de todos esses anos, sou capaz de intuir o que minha professora tentava, em vão, explicar naquela agradável aula de filosofia literária.

Todos os dias, no fim da tarde, numa rua central e muito movimentada da Tijuca, vejo um mendigo que tenta interagir com as pessoas que transitam pelas calçadas. Ele passa a maior parte do tempo sentado em frente a uma drogaria, pedindo pão. Isso mesmo. Ele pede pão. Aquele cotoco de homem se desloca de um lado a outro no seu minúsculo espaço de calçada, equilibrando-se nos braços – porque não tem pernas – suplicando pão a todos que passam. As pessoas circulam com pressa, esbarram umas nas outras e nitidamente se afastam ao ver a figura grotesca daquele homem. Preferem invadir a rua a colidir com o mendigo. Outros ignoram tão veementemente que chegam a esbarrar no homem e continuar andando, sem um pedido de desculpas. Lá pelas tantas, ele irrompe num grito insuportável “Me dá um pedaço de pãaaaaaaaaaaaaaaaaaaao!” que chega a assustar os mais desavisados e só assim ele consegue romper a barreira da indiferença, mas nem por isso ganha o tão almejado… pão.

Na mesma medida em que ele grita, a vergonha se apodera de mim. Demorei um tempo a perceber que a vergonha era menos pela sua fragilidade do que pela minha, pois toda vez que o vejo me sinto culpada por não ajudá-lo, culpada por fazer uma força imensa para ignorá-lo, culpada por sentir culpa. Observo as pessoas no seu vai e vem e penso se é só a mim que ele incomoda. Ironicamente, me sinto culpada pela minha própria fragilidade, por não ignorar. Muitos acreditam que se o ajudarmos ele vai se acomodar e não vai sair dali. Essa certeza os mantêm indiferentes e seguros, mas eu fico dividida entre ajudar – e mostrar a todos a minha fragilidade – ou em conviver com essa situação perversa. Tenho vergonha, porque a fragilidade dele expõe a minha fragilidade.

Esse homem revela duplamente em sua dantesca figura a condição de desamparado e doente. Dois estigmas que a sociedade atual insiste em ignorar. Nesse tempo de extrema valorização da vida saudável, adoecer parece ser tomado como uma fraqueza de caráter, não de corpo. Se o indivíduo adoece, a mensagem é que ele não se cuidou, não fez a sua parte, portanto, é constante a sensação de culpa quando se adoece. Tomamos para nós mesmos a responsabilidade única e exclusiva sobre nossa saúde, pois assim somos educados a fazer. Quando adoecemos, somos como esse mendigo: persona non grata, peça inútil nesse mundo globalizado e em constante movimento. Intensamente conectado, mas extremamente excludente.

O que esse homem conseguiu me ensinar, nem a minha querida professora, nem os grandes estudiosos da pós-modernidade conseguiram.  Ele me ensinou que todos somos, em certa medida, culpados pela nossa ignorância. Esse ser mutilado revela a todos a nossa condição de interdependência e nos lembra de uma fragilidade a todos iminente, mas escamoteada a todo custo. Olhar esse homem é se confrontar com a própria condição humana: somos frágeis, imperfeitos e inacabados. Ele nos faz reconhecer a culpa não pelo mal que um dia fizemos, mas sim pelo bem que todos os dias deixamos de fazer. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa!

PS: Essa crônica foi escrita no final do ano passado e só agora publicada, de modo que não sei se o homem permanece no mesmo local, mas a culpa continua aqui em todos os momentos em que transito pelo Rio de Janeiro e me deparo com realidades como essa, cada vez mais frequente.


* Escritora, residente em Perth, Austrália

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