quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Uma crônica de Natal


* Por Célio Simões


Já li, não sei bem aonde, que a família é um aglomerado de pessoas que se detestam. É possível que sim, bastando lembrar que a gente já nasce parente um do outro, enquanto amigos, nós os elegemos pelas afinidades, pela mútua empatia e pelos mais elementares gostos e predileções.

Tenho um alentado número de amigos, bem menor, aliás, do que os verdadeiros e incondicionais amigos, merecedores da minha confiança. Amizades nascem de muitas semelhanças, mas também de diferenças.

Na escola da vida aprendi a reconhecer um amigo pela presença silenciosa nos momentos de dor. Amigo verdadeiro sabe se alegrar com as nossas conquistas e tornar suportável as nossas derrotas. Amizade que cultiva a inveja perde o sentido e sufoca o amor gratuito que fortalece a árvore da partilha.

Venho de uma numerosa família do interior da Amazônia, no seio da qual as demonstrações de afeto se exteriorizavam durante o ano todo e não apenas no Natal, época propícia a internalizar sentimentos nobres de solidariedade, paz, amor e justiça. E quando falo justiça, o faço inspirado na milenar sentença de Ulpiano, que afirmou ter a mesma três preceitos: viver com honestidade, não lesar o próximo e dar a cada um o que é seu.

Natal de antigamente comovia pelo tocante ritual da missa do Galo à meia-noite (hoje antecipada para o fim da tarde por temor de assaltos), os cânticos contagiantes, o clima de fraternidade, os belos presépios e a saga dos Reis Magos, a quem pode ser atribuída a iniciativa da oferta de presentes, pois assim o fizeram para homenagear Cristo recém-nascido. Um capítulo à parte deve ser reservado ao símbolo universal das festas natalinas – a árvore de Natal – recheada de bolas, luzes cintilantes e multicores.


Tínhamos o costume, em casa, de cumprir um ritual nessa época do ano. Primeiro, a troca dos cartões de felicitação, enviados por amigos locais ou de longe, com a ajuda dos Correios, tradição que hoje sucumbe pela praticidade dos e-mails e redes sociais. Depois da missa do Galo na centenária Catedral de Sant’Ana, uma reunião em torno da grande mesa da sala, ornada com flores e bordados, onde cantávamos “Noite Feliz”, sem perder de vista as deliciosas iguarias onde se destacavam doces de todos os tipos e o indefectível chocolate com ovo, uma delícia que as modernas dietas baniram dos lares, sob a ameaça de aumentar o colesterol.

Tenho em mente um Natal que me foi particularmente gratificante. Eu cursava o segundo ano ginasial em Óbidos, tinha apenas 16 anos e me foi dada a chance de conhecer em Santarém (onde eu nunca havia estado) a SEAS – Serviço Estudantil de Assistência Social, uma entidade filantrópica formada pela estudantada local, tendo como missão humanitária a arrecadação de numerário, roupas e mantimentos para as pessoas humildes da periferia.

Naquela época remota, enfrentei com estoicismo mais de 8 horas de barco descendo o Amazonas, ao encontro do azul do Tapajós, cuja primeira visão me deixou sem fôlego pela formidável beleza.

Algumas famílias santarenas previamente selecionadas hospedaram os alunos obidenses, que obviamente não possuíam dinheiro para pousadas ou hotéis, tendo eu ficado em companhia do Adailton Moreira na acolhedora residência de um cidadão chamado José Maria Matos, pai do jovem José Manoel, sem me dar conta de que era ele o vice-prefeito do município.

E ciceroneados pelos alunos do Dom Amando visitamos as pessoas que viviam na extrema pobreza, levando as prebendas adrede coletadas pelos novos colegas de missão social.

Lembro bem que o encerramento do evento foi no Santa Clara, auditório lotado, onde um artista local chamado Laurimar Leal interpretou uma linda canção denominada “Bernadete”, que anos depois, já morando na Pérola, vim saber ser de autoria do grande maestro Isoca.

Achei tão inspirada a composição que sem explicação plausível, decorei a letra e a música naquela única exibição, que canto “mentalmente” até hoje quando bate a saudade daquela beira de rio. Com muito orgulho, sou obidense de nascimento, belenense por opção, porém me considero santareno por direito de conquista, pois na Terra Querida vivi inesquecíveis dias da minha juventude.

De regresso à Cidade Presépio, pusemos mãos à obra e fundamos a SEAS de lá, elegendo o Firmino Chaves de Souza como seu presidente, por se tratar de um aluno de procedimento lhano e exemplar conduta dentro e fora da escola. Trabalhamos à roda do ano arrecadando brinquedos e vestuário usado, principalmente estes, e na quadra natalina, apesar das férias escolares, um grupo de estudantes, sob um sol inclemente, entregou-se à cansativa porém gratificante tarefa da distribuição dos presentes.

Nos olhos e palavras daquelas pessoas, além da gratidão, era perceptível o supino espanto simplesmente porque foram lembradas, pois de outra forma passariam as festas de fim de ano esquecidas, sem nada de seu senão o dia e a noite.

Decididamente aquele Natal de 1963 foi diferente. Pelos recantos da ampla casa, meus pais, irmãs, tios, avó e agregados da família se entregavam a álacre confraternização antes dos parabéns pra você (ia esquecendo de dizer que o dia 24 é meu natalício…), preparando caprichosamente a ceia que precedia a chegada do “bom velhinho” e eu como que distante dali, com a imagem ainda viva daqueles seres humanos despojados de bens materiais, de alento e de esperança que visitáramos na antevéspera.

Gente que eu nem imaginava que passava tantas agruras e viviam (ou sobreviviam) bem perto de mim, numa cidade pequena.

Nos dias atuais, quando o Natal transmudou-se num grande e lucrativo evento comercial por engenhosos marketings que induzem furiosamente às compras, procuro lutar nos limites da minha residência para encurtar a progressiva distância que vai afastando essa maravilhosa festa de suas mais lídimas raízes e tradições.

Para o brinde e a troca de presentes, ainda mantidos, reúne-se a família e os amigos achegados em volta do bolo, das castanhas e do panetone, cujo sabor para mim nem de longe se compara ao prosaico e gostoso chocolate com ovo.




* Obidense, é advogado e membro da Academia Paraense de Jornalismo.

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