sábado, 20 de dezembro de 2014

Perda da fé


* Por Ivan Lins


Até os quatorze anos conservei-me católico fervoroso, confessando-me e comungando com frequência. Em começos de 1919, porém, tendo sido atropelada uma ex-empregada nossa, Rosalina, fui, com minha mãe, visitá-la numa casa de cômodos instalada em velho casarão na rua Carvalho de Sá, pouco acima da Igreja Nossa Senhora da Glória. Logo na entrada deparamos com crianças de três a quatro anos seminuas, muito magras e pálidas, de barriga estufada, num estado de subnutrição impressionante. Tudo nesse velho casarão denotava a miséria dos seus moradores. O quarto em que estava a nossa antiga empregada devia ter pouco mais de doze metros quadrados e nele, segundo nos declarou, dormiam, na maior promiscuidade, oito, e, às vezes, dez pessoas. Foi o meu primeiro contato violento com o sofrimento humano, passando, desde esse momento, a perguntar-me: sendo Deus onipotente, onisciente e de infinita bondade, como pode consentir tanta desgraça na terra?

Então me veio à memória o que havia lido com meu pai, no livro de Cícero sobre a Natureza dos Deuses, onde narra que perguntando Hierão de Siracusa a Simônides: "Que coisa é Deus"?, pediu-lhe o filósofo alguns dias para responder, findos os quais lhe disse: "Quanto diutius considero, tanto mihi res videtur obscurior" - "Quanto mais penso, tanto mais obscura se me apresenta a coisa", conceito que, ao analisar com o professor Bôscoli a estrofe 80 do canto 10o dos Lusíadas, vi confirmado pelo vate luso:
"... mas o que é Deus, ninguém o entende
Que a tanto o engenho humano não se estende."

Pondo-me, a partir desse momento, a investigar o grave problema que me salteou na casa de cômodos da rua Carvalho de Sá, encontrei, na biblioteca de meu pai, o livro de Jules Carré: Démonstration de l'inexistence de Dieu, onde ele atribuiu a Epicuro, no terceiro século antes de nossa era, o seguinte raciocínio, desde então, a meu ver inabalável:

"O mal existe. Todos os seres vivos sofrem, ora pelo corpo, ora pelo espírito. Padecemos pelas intempéries, pela miséria, pelas doenças, pela ignorância, pelos vícios, pelas injustiças, pelas guerras, etc. Crianças há que só nascem para sofrer e morrer. Homens existem de tal modo desgraçados que melhor lhes fora nunca haverem nascido. O mal existe, portanto: eis uma verdade incontrovertível. Ora, uma de três: 1ª (Deus sabe que o mal existe, pode suprimi-lo e não quer fazê-lo - tal Deus seria mau, logo inadmissível); 2ª Deus sabe que o mal existe, quer impedi-lo e não o pode; neste caso não seria todo poderoso, e, consequentemente, é inadmissível; 3ª Deus não sabe que o mal existe, donde Deus seria ininteligente, e, portanto, também inadmissível" (Apud Jules Carré: Démonstration de l'inexistence de Dieu, págs. 5 e 6 da ed. de Paris, 1912).

Logo, se Deus existe, ou não possui, em grau infinito, bondade, poder e inteligência, ou, se os possui, procede como se não interferisse nos acontecimentos terrestres. Daí não há como fugir.

Não constituem os terremotos catastróficos, como o de Lisboa no século XVIII, cidade tão exaltadamente católica nesse tempo, a prova cabal de que se existe, no Universo, um Ser Superior, ele não se ocupa com as minúcias do que ocorre em nosso miserável planeta?

Na observação de Pascal, há ainda mais: segundo as leis naturais, se Deus existe é incompreensível, porque não tendo partes, nem limites, nenhuma relação apresenta conosco, escapando aos nossos sentidos e à nossa mensurabilidade. A concepção de Deus se torna, pois, a seu ver, um assunto muito mais de sentimento do que de razão: quem crê em Deus o sente, mas não o demonstra.

Por outro lado, quaisquer que sejam as opiniões adotadas sobre Deus, a alma, a criação, a eternidade da matéria, os milagres, o céu, o inferno, a Trindade, a encarnação e a crucificação de Jesus Cristo, de onde vêm e para onde vão os homens depois da morte, em nada essas opiniões modificarão o curso das coisas do Universo, chegando o maior sábio e santo ao termo de sua existência tal qual o mais completo imbecil e o mais execrável criminoso.

Fui, desde então, atormentado por cruciante perplexidade, ficando em condições de avaliar bem o sofrimento daquele "grande mestre de teologia" da Universidade de Paris, o qual, conforme conta Joinville em sua vida de São Luís, um dia procurou, sucumbido, o Bispo de Paris, a fim de dizer-lhe, debulhado em amargas lágrimas, que não podia mais obrigar o seu espírito a crer o que, sobre o sacramento do altar, ensina a Igreja.

Afligia-me, na perda de minha fé, o desmoronamento de que via ameaçados os princípios morais e sociais, que até aí me haviam norteado a vida, esteados todos na concepção de Deus, ministrada pelo Catolicismo. E, a partir desse momento, passei a fazer aproximações entre as desordens morais e sociais de nossos dias e as que afligiram a Roma dos Césares, de que tomara conhecimento através de Tácito, Suetônio e Petrônio.

Meu sofrimento decorrente desse estado de espírito foi muito grande. Mais de uma vez procurei o confessionário da Igreja São João Batista, na rua Voluntários da Pátria, e expus ao seu vigário, Padre Rosalvo Costa Rego, as angústias que me iam na alma. Em seus conselhos, como confessor, ele advertiu que o único remédio, para os problemas que me atormentavam, era a oração, cabendo-me implorar ardentemente a Deus que me concedesse de novo a graça da fé, afastando de meu espírito as dúvidas nele suscitadas pelo sofrimento das camadas pobres de nossa população. Numa dessas conversas lembrou-me que, diante do mesmo problema, caíra Santo Agostinho na heresia maniqueísta, passando a admitir dois princípios igualmente poderosos - o do Bem e o do Mal. Dela só se livrou ao rejeitar a razão no exame dessas questões para exclusivamente aderir à fé, que não admite empreenda o homem penetrar nos imperscrutáveis desígnios e mistérios da vontade de Deus. Seria o mesmo que o barro a interpelar o oleiro por fazer dele um vaso desta ou daquela forma.

Por mais porém que rogasse e apelasse para a graça divina no sentido de restituir-me a fé perdida, jamais a recuperei e atravessei perto de quatro anos em cruel descrença e pessimismo, deleitando-me, nessa fase, com a leitura de Nietzsche e Schopenhauer, sobretudo as Dores do mundo deste último, numa tradução, se não me engano, de Albino Forjaz Sampaio, editada em Lisboa. Assim me mantive até meados de 1922.

Epitácio Pessoa, sobrinho do Barão de Lucena, fora recebido com sérias restrições pelos positivistas ao ascender à Presidência da República, visto acharem que era um saudosista da monarquia, sendo disto indubitável indício haver restabelecido as ordens honoríficas prescritas pela nossa Constituição de 1891, a qual mantivera, sob este aspecto, as tradições da Revolução Francesa. Contra ele tomou posição veemente Reis Carvalho, e, em represália, Epitácio o transferiu do seu posto da Alfândega do Rio para a de Manaus. Era esta uma cidade inóspita, e, vindo a adoecer, Reis Carvalho pediu uma licença a fim de tratar-se no Rio. Para embarcar, exigiram-lhe, porém, de acordo com recentes determinações do Governo Federal, atestado de vacina. Insurgindo-se, contra esta última, velho cavalo de batalha de seus correligionários da primeira geração, Reis Carvalho requereu um habeas-corpus ao Supremo Tribunal Federal, através do Dr. Bagueira Leal e do Dr. Otávio Murgel de Rezende. Meu pai que adquirira, em seu convívio com João Pinheiro, simpatias pelo Positivismo, lhe deferiu o pedido em longo voto exarado na sessão de 19 de abril de 1922, o que levou o Dr. Bagueira Leal a oferecer-lhe várias publicações do Apostolado Positivista do Brasil, entre as quais o Esboço biográfico de Benjamin Constant, da lavra de Teixeira Mendes.

Concluindo eu então os meus preparatórios, devia nesse ano prestar exame de História do Brasil. Em meados de abril, tendo de faltar algumas aulas, o professor dessa matéria, Roberto Seidl, determinou lhe apresentassem os seus alunos, por escrito, nos primeiros dias de maio, os seguintes trabalhos: "Qual o papel de Benjamin Constant na fundação da República?" "Merecem aplausos as intervenções do Brasil no Prata?" "Foi benéfica ao Brasil a influência do Marquês de Pombal?"

Os compêndios de História do Brasil apenas consignavam, nesse tempo, a propósito da fundação da República, que o tenente-coronel Benjamin Constant também participou do movimento revolucionário, coadjuvando Deodoro. Procurei, pois, meu pai e disse-lhe que, tendo acompanhado, como estudante em São Paulo, os antecedentes da República, talvez pudesse fornecer-me dados para o ponto pedido a propósito da atuação de Benjamin Constant. Deu-me ele então o Esboço biográfico de Benjamim Constant por Teixeira Mendes, que dias antes recebera do Dr. Bagueira Leal, e me declarou: "Muito mais do que qualquer esclarecimento de minha parte sobre Benjamin Constant e a fundação da República, vai valer-lhe o livro de um dos nossos homens mais notáveis. É o chefe dos positivistas ortodoxos do Brasil e alia, a enorme saber, insuperável correção moral. Ainda há poucos dias li um artigo em que se dizia ser este volume de Teixeira Mendes, pela independência e honestidade, um dos mais sérios de nossa bibliografia histórica."

Observava Bossuet ser a "conversão uma iluminação súbita". Foi o que ocorreu comigo ao ler o livro de Teixeira Mendes, embora, literariamente, devo confessar, deixe muito a desejar, não sendo de leitura fácil. Muitos anos depois cheguei a almejar a perda de minha memória para lê-lo, como o fiz pela primeira vez, isto é, com o deslumbramento que, nessa quadra, se apossou de mim. Foi o momento mais decisivo de minha formação, desvendando-me um mundo moral, social e cultural inteiramente novo, para o qual estava amadurecidamente preparado. Por pouco se repetiu em minha leitura do Esboço biográfico o episódio daquele abade do século XVIII que, pretendendo assinalar os trechos mais belos da Ilíada, ao concluir-lhe a leitura viu ter marcado o poema inteiro. Mais tarde pude verificar, diante do que havia acontecido comigo, a procedência da observação de Pierre Laffitte, segundo a qual o positivista nasce e não se faz. Eu já era positivista sem o saber, e, por isto, devorei o volume de Teixeira Mendes com um encantamento que nunca mais encontrei em outro livro. Adotei-lhe todas as teses, inclusive as relativas à Guerra com o Paraguai, que Roquette-Pinto, frequentador assíduo das conferências de Teixeira Mendes no Templo da Humanidade, admiravelmente resumiu no discurso com que, em 3 de março de 1928, sucedeu a Osório Duque-Estrada na Academia Brasileira de Letras.

O professor Roberto Seidl gostou de tal modo de minhas composições sobre os pontos por ele dados para a dissertação de seus alunos que me aconselhou a guardá-las, o que fiz. Relendo-as, para escrever estas memórias, vejo que assim concluí a propósito do papel de Benjamin Constant na proclamação da República.

"Se não fosse Benjamin Constant, o levante de 15 de novembro não teria passado de simples movimento de quartéis, uma banal mudança de ministérios.

A César o que é de César. A Benjamin Constant, pois, a glória da fundação da República! Para que alguém se compenetre da magnitude do papel de Benjamin Constant, é preciso que leia o maior mestre sobre o assunto - Teixeira Mendes, em sua obra gigantesca, monumental: Esboço biográfico de Benjamin Constant."


* Escritor, jornalista e professor, membro da Academia Brasileira de Letras

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