domingo, 28 de dezembro de 2014

Encantação do fogo


* Por Austregésilo de Athayde


Outro dia, Brito Broca, que lê velhos jornais e velhas revistas, descobriu num deles, muito maior de trinta anos, uma nota sobre o romance Quando as hortênsias florescem, que escrevi, em 1919, e felizmente não foi publicado. Os originais existem, mas vou destruí-los no fogo, um destes dias. Deixou de aparecer na época, porque eu o escrevera tão ao vivo nas personagens e nos fatos, que o meu querido e saudoso tio Professor Austregésilo, para quem eu lera. alguns capítulos, me aconselhou a deixá-lo dormir na gaveta, ou o que lhe parecia mais acertado, substituir as pessoas e os episódios, mas isso, no meu ponto de vista, importaria em mutilar a obra de arte.

Passagens do Quando as hortênsias florescem viram a escassa luz da publicidade em jornais sem muitos leitores. Logo descobriram que um dos tipos retratados era o polemista Antônio Torres, com quem eu andara às turras na imprensa e que teve a imprudência de desafiar-me para um duelo. Torres era gordo e pesadão, jamais se dera a exercícios físicos e nada entendia de como se bater a espada ou florete. No tempo, eu tinha músculos de aço, o boxe era um dos meus esportes e o mestre Zé Ferreira adestrara-me na esgrima para “toucher à la fin de l’envoi” qualquer espadachim famanaz. Duma intervenção oportuna de Gilberto Amado, que advertiu Torres dos riscos que ia correr, resultou uma convenção de cavalheiros, segundo a qual não deveríamos mais nos engalfinhar em letras de fôrma.

Outra figura, traçada a tinta vermelha no romance, era um político da época que se metera em certa aventura amorosa e que eu, na minha inocência de escrita quase infantil, decidira relatar, com grande escândalo de meu tio, que era amigo do homem.

Tantas razões contrárias pareceram-me boas para deixar a peça literária adormecer no bosque. Nenhum príncipe encantado surgiu para despertá-la e, somente agora, Brito Broca foi encontrar suas reminiscências nas páginas desbotadas da A folha, de Medeiros e Albuquerque, e pediu-me que dissesse onde andava o livro, que sorte teve e por que o autor não o deixava correr a grande aventura literária.

Por isso, meu caro amigo, porque nada de bom havia nele, e quando o releio, um tanto encabulado comigo mesmo, não me canso de agradecer os conselhos que me foram generosamente dados para enviá-lo ao limbo donde não sairá jamais.

Não é que desgoste da tentativa malograda de inserir-me entre os romancistas do tempo. Antes fizera um outro livro denominado, novela de beira de praia, elocubrada e escrita no Seminário da Prainha, vendo ao longe as areias do Mucuripe, os coqueirais e as jangadas de vela, retornando do mar, no cair das tardes. Mas levado pelas circunstâncias à crítica literária em que me dei logo ares de rigoroso, não quis expor o flanco aos adversários, publicando a minha própria literatura.

Naquelas eras, eu, como os de minha geração, vivia impregnado de Anatole France. Foi sob a influência direta e implacável do Le Lys Rouge e do velho Monsieur de Bergeret que me descartei da angústia que se apossa do escritor e não o larga enquanto não lavra o papel. Sabem lá o que é a gente andar de conversas diárias com o Abbé Coignard, freqüentando “La Rotisserie de la Reine Pédauque”, ou perder-se em intimidades com o mundo de cínicos raisonneurs criados pelo demônio risonho que espalhou em tantos livros a mais impiedosa ironia que já escorreu do coração humano! E andar nessas companhias, quando se tem apenas duas décadas de existência, e nada é certo ou apenas seguro, e já se perdeu o Norte antigo sem que outro reconduza a alma e lhe dê novas e melhores inspirações!

Somente depois do encontro com Carlyle e Emerson, e, principalmente, quando me afundei na literatura de William James, é que as grandes sombras do ceticismo foram-se dissipando.

Nada resta quase daquele jardim antigo cujos perfumes entorpeciam. Foi debaixo de suas árvores que as hortênsias floresceram, um dia, na imaginação de um adolescente que viera de distantes paragens para tentar a temerária ascalada. O caminho da ascensão povoa-se de túmulos onde jazem tantas coisas mortas. Num deles está encerrado o romance Quando as hortênsias florescem, à espera da encantação do fogo...

(Vana verba. Conversas na Barbearia Sol, 1971.)


* Escritor e jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras.

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