terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Admirável vitalidade intelectual


O “Diário Catarinense”, tradicional jornal de Santa Catarina, publicou, em 30 de janeiro de 2014, extensa reportagem, assinada pela tradutora e doutora em Literatura pela Universidade de Montpellier, na França, Luciana Racier, alusiva aos 90 anos de Salim Miguel, completados naquela data. Fez um resumo, aliás muito bem feito, da carreira literária desse jornalista e escritor, classificado, na manchete da matéria, como “um dos intelectuais mais completos da história do Estado e do país”. E, creiam, não houve nenhum exagero nessa classificação. Uma das coisas que mais me chamaram a atenção, e me surpreenderam, nessa reportagem que, reitero, só pode ser qualificada de excelente, foi o anúncio, por parte do homenageado, do lançamento de um novo livro, um romance policial intitulado “Nós”, publicado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, da qual foi não apenas fundador, mas o responsável por sua consolidação.

E por que a surpresa? Porque, convenhamos, não é nada comum tamanha lucidez e vitalidade intelectual em um nonagenário. Salim Miguel, com mais de trinta livros publicados e bem sucedidos (basta atentar para a quantidade de prêmios que conquistou), poderia dar sua obra por concluída que ninguém iria estranhar. Muitos escritores, com bibliografias muito menores e em idade bastante inferior à dele, agem assim. Esse, todavia, não é o perfil desse “líbano-biguaense” (conforme Luciana Rassier o qualifica em sua reportagem), que sempre se mostrou, antes e acima de tudo, homem de ação. Se considerarmos 1951 o início da sua carreira literária, época da publicação do seu primeiro livro, “Velhice e outros contos”, ela já terá 63 anos. Contudo, sua trajetória no mundo das letras começou antes, muito antes, em 1948, em Florianópolis, com a fundação da revista “Sul”, que revolucionou os meios literários e culturais catarinenses e com a qual colaborou por toda uma década.

Ou seja, como destaca Luciana Rassier, no dossiê publicado pela Revista Litteris em 2011, Salim Miguel atua, desde a década de 40, “escrevendo, lendo, criando projetos, consolidando parcerias”. E isso até a idade de 90 anos, como comprova o lançamento de seu novo livro, o romance policial “Nós”. Admirável, não é mesmo? Admirável e invejável!!! Não foi apenas na Literatura que se destacou. Por exemplo, entre as décadas de 1970 e 1980, elaborou fotorreportagens para a revista Manchete, então uma das líderes de circulação nacional. Mostrou-se, ainda, administrador competente e eficaz. Entre 1983 e 1991, por exemplo, dirigiu a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Sob seu comando, ela se tornou uma das mais importantes do País no gênero.

Salim Miguel nasceu, em 30 de janeiro de 1924, em Kfarssouron, no Líbano. Veio para o Brasil, com a família, quando tinha apenas três anos de idade. Desembarcaram no Rio de Janeiro, onde moraram por praticamente um ano. O escritor, todavia, considera-se catarinense por adoção. Isso porque sua família fixou-se na cidadezinha de Biguaçu, região metropolitana de Florianópolis, de cerca de 65 mil habitantes, em 1929. Ali o escritor passou a infância e a adolescência e descobriu a vocação para as letras. E que vocação! Destaque-se a experiência amarga pela qual passou, após o golpe militar de 1964. Ele e a esposa, Eglê Malheiros, foram presos, na oportunidade, e sem nenhuma denúncia formal ou motivo minimamente justificável.

Luciana Rassier destaca, a esse propósito, na sua reportagem no “Diário Catarinense”: “Salim Miguel não era nem membro do Partido Comunista e nem oponente ao governo. Aliás, na época do golpe militar, ele era chefe do escritório da Agência Nacional de Santa Catarina e membro da equipe do Gabinete de Relações Públicas do Governo Celso Ramos. Além de não impedirem sua prisão, esses vínculos acarretaram situações insólitas, já que durante sua prisão o escritor e jornalista encontrou conhecidos e colegas que, após o golpe, tinham sido encarregados dos interrogatórios” Todavia, as pessoas inteligentes e dinâmicas sabem como fazer de limões azedos deliciosas limonadas. E Salim soube. Durante o período de encarceramento, anotou tudo o que viu e ouviu no cárcere. E, anos mais tarde, soube aproveitar como ninguém esses apontamentos.

Luciana Rassier escreveu a respeito: “Salim Miguel esperou vinte e oito anos para retomar as anotações do diário que escreveu durante os 48 dias em que ficou preso. A partir delas, ficcionalizou sua experiência em um belo e premiado romance, ‘Primeiro de Abril, Narrativas da Cadeia’, cujos capítulos, que podem ser lidos independentemente, diferem bastante. Os que descrevem os interrogatórios ou a tortura psicológica recriam a tensão e a angústia dessas situações, enquanto que outros capítulos são escritos com humor e ironia”.

E a tradutora prossegue: “Publicado em 1994, trinta anos após os eventos que conta, o livro não privilegia apenas as alusões a fatos históricos _ ao contrário de tantos outros textos relativos à ditadura militar no Brasil. O mais marcante é o esforço da memória para reconstituir a atmosfera daqueles dias difíceis. As anotações no diário são um modo de lutar contra a coisificação dos indivíduos, na medida em que essas referem-se em sua maioria às pessoas que ali estão. Salim Miguel nomeia os prisioneiros, os faz existir, lhes dá a palavra. Essas vozes, até então silenciosas, são ouvidas e dão suas versões dos fatos. Assim, esse texto constitui uma versão complementar, uma alternativa à versão veiculada pelos textos oficiais. Versão que também é alternativa por estar à margem das metrópoles e dos centros de poder do Brasil”.

Estas são apenas algumas (poucas) referências à vida desse personagem que me fascina e entusiasma. Isso, somado à qualidade do seu livro “O castelo de Frankenstein”, que me chegou, praticamente por acaso, em 1986, ás mãos levaram-me a tomá-lo como paradigma de amor e dedicação às duas atividades que se constituem em minhas incorruptíveis paixões: o jornalismo e a Literatura. E o que me fascina, particularmente, em Salim Miguel é sua longevidade e vitalidade intelectual que o mantêm na ativa, mesmo aos 90 e bem vividos anos de idade.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Realmente incansável, considerando-se o período de mais de dois tempos para se aposentar (63 anos, pelas suas contas, Pedro), e sempre produzindo. Admirável!

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