sábado, 22 de novembro de 2014

Lã de boa ovelha

* Por Laís de Castro

Quando eu fugi de para estudar achei que estivesse livre. Fui embora, escolhi a faculdade de medicina mais distante que conhecia, migrei para o Rio Grande do Sul, imagine você, me bandeei quase para a fronteira da Argentina, danei a falar tu, dançar rancheira e até umas bombachas vesti, fiquei meio veado com elas, nem liguei, era tudo gostoso por . Durante um tempo esqueci aquele maldito dia, aquela maldita mulher chorando feito Maria Madalena, em cima do corpo do filho roxo, inchado, cheio de água por dentro e por fora. E aquela irmã gorda feito uma pipa de vinho, silenciosa, segurando a minha mão como quem perdoa o assassino do irmão, desde que ele fique ali, no lugar do morto, como se gente fosse coringa de baralho que pode tomar qualquer lugar e não tem importância nenhuma. A cidadezinha inteira ali, os sinos da igreja tocando a Ave Maria, que no interior a Ave Maria de Gonoud, coitada virou música de cadáver insepulto.  E aqueles buquezinhos de flores caipiras apanhadas dos jardins chegando, das mãos de todas as mães da vila. E todos me olhando como se eu fosse o culpado.

Eu tinha que fugir. Foi o que fiz, na primeira oportunidade.

Depois de uns três anos no Rio Grande do Sul, namorando uma moça faceira, como se diz por , deitando com ela em silos e pastos, imaginava que tudo estava perfeito. Tinha conseguido enterrar o passado exatamente cinco anos depois de enterrar meu melhor amigo, após daquele acidente voraz.

Que nada. A história ainda estava por começar. Numa manhã bem azul, andando pela rua, eu jurava estar vendo o falecido, da mesma idade que a minha, bonito, sorrindo para mim, vindo na minha direção, os braços abertos prontos para um abraço fraterno. Horror. Medo. Repulsão, asco, rechaço, pavor. Saí numa disparada tão grande que parecia burro bravo em fim de rodeio. Acho que galopei sem cavalo uns dois quilômetros até a língua sair da boca tão grande como uma como gravata e o coração pular feito bode novo. Caí no chão, então, sentado no meu quarto da república, deitei de bruços e chorei. Chorei uma tempestade, um temporal, uma chuva de verão que foi se tornando mais fina e virou uma garoa intensa.

Naquela tarde me mantive no quarto de piso de tacos, com uma cama e uma escrivaninha além do armário simples de duas portas, como um monge numa cela de convento, instaurando uma diligência interior para, ao mesmo tempo, entender o fato extraordinário daquela tarde e purgar meu pecado não cometido.

Naquela noite não pude visitar a namorada viçosa e com cheiro de flor, fiquei envolto no cobertor, os olhos parados no branco da parede, sentado e abraçado às pernas como se elas pudessem me proteger de um tiro que viria daquele lado. E a maldita parede branca projetava numa tela aquele rosto, que continuava vindo para mim. Tomei um calmante faixa preta, uma paulada na cabeça, ainda bem que estudava medicina e tinha acesso a todo tipo de droga. No dia seguinte acordei atrasado, perdi as primeiras aulas, parecia que um corvo tinha comido os meus olhos de tão fundos que eram.
 
Na faculdade, inventei uma doença para os colegas, uma ressaca, uma crise hepática, uma enxaqueca insana que me perseguia. Tinha espantado o fantasma. Fui me recuperando devagar, não sem ansiedade e o medo desgraçado de ver a figura de novo. Se o dia amanhecia lindo e o céu azul, não tirava os óculos e não passava naquela esquina dele. Sabe-se se o cara resolveu morar por ali... Retomei os passeios noturnos, a namorada, o mate amargo, antes um bom mate amargo do que a vida...
 
No fim do ano inventei uma desculpa e não fui passar o Natal com os velhos pais, os irmãos, a familiagem toda que ficara na cidadezinha. Inventei um curso de hematologia, depois misturei, falei que era de reumatologia, fiz a maior confusão e não fui. Passei o Natal comendo pato na casa da namorada, que era simples, querida, nascida de família imigrante italiana, olhos azuis como a manhã maldita, mas doces feito pirulito em boca de criança. Afinal, eu estava querendo me casar com ela e me estabelecer por , ou atravessar a fronteira e acertar uns trabalhos em pesos, que o peso valia muito mais que o cruzeiro naquela época. Não tinha consciência, ainda, de que ficar ali era a melhor maneira de fugir de um destino que me empurrava de volta para casa, para a minha cidadezinha e do ex-amigo morto, e ia ficando, aconchegado às mantas e cobertores com cheiro de ovelha daquela casa de madeira escura, enfeitada de tapetes rústicos bordados à mão, panelas de ferro, flores vermelhas, cheia de irmãos com rosto branco de maçãs vermelhas como aquelas que mesmo ali se colhia e comia.

Tinha me acostumado ao macarrão pesado da sogra gaúcha, ao sotaque cantado, aos gritos de alegria do sogro, às gargalhadas solenes e ao vinho tinto vigoroso. Como a vida que corria ali parecendo um rio de águas geladas, transparentes, diamante puro.

O primeiro sonho aconteceu mais ou menos uns oito meses depois daquela visão na rua. O cara estava vivo e me chamava, da casa dele, sentado na sala onde seu corpo havia sido velado, o mesmo sorriso branco, a camisa branca, a mão branca, me dizendo vem para , você me tirou daqui tem que tomar o meu lugar. Acordei suando como uma chaleira fervente. O segundo sonho veio depois de um mês. Eu andava esquisito e a italianada toda reparava. Era um homem com medo, cabisbaixo, tímido. Os colegas da faculdade começaram a encarnar os médicos que ainda não eram e davam conselhos das mais nobres estirpes. Desde não dormir sem drogas a não dormir sozinho, como simplesmente não dormir. Passar o resto da vida alerta, para não sonhar com aquele moleque, em quem, num momento de irresponsabilidade juvenil, eu tinha dado um caldo. Um caldo eterno. Ele morrera, sei se do caldo, do susto, meu melhor amigo.

Nós tínhamos levantado cedo naquela manhã azul. O azul dos olhos da amada, de todas as manhãs do verão nacional, dos meus descaminhos profanos e permanentes.

Era sábado e resolvemos ir nadar num rio que tinha logo ali, a uns três quilômetros, o que, para dois adolescentes de 16 anos, o corpo arrebatado pelo vigor e a bicicleta no portão, era exatamente nada. Vencemos a distância num átimo, mergulhamos nus em pêlo naquela água tépida que o sol aquecia levemente, a vida toda pela frente, a felicidade nas risadas, tudo lindo. O rio passava por baixo da linha do trem, os passageiros nos olhavam, quase sempre, com inveja, suando, de dentro dos vagões de primeira classe com banco de palhinha ou de segunda classe com bancos de madeira crua, a maria-fumaça soltando brasas que restavam da lenha que a impulsionava para todos os lados e queimando a roupa de todos. Ali o rio fazia uma espécie de pequena cachoeira, com as pedras que sobraram da construção da ponte e as águas se abriam numa rotunda mansa e clara. Então continuava, como se não houvesse a interrupção. A gente brincou de jogar pedra, de passar por baixo da perna em mergulho profundo, de pular do ingazeiro e de dar caldo. Foi esse último brinquedo que deu errado. Eu dei uns dez caldos nele e tomei uns dois ou três. E continuei dando, mostrando minha força, ele pedia para eu parar...

O sonho foi ficando cada vez mais sinistro e mais freqüenteEra sempre igual, recorrente, mas às vezes meu velho companheiro aparecia com a mão descarnada me convidando para ir até . Outras vezes lhe faltava a tampa da cabeça e, em outras, a camisa estava banhada em sangue, como se a hemorragia do afogamento quisesse se exibir, aquele vermelho vivo desafiando meus saberes da ciência, que sangue não fica vermelho esse tempo todo, mas a gente cada coisa...

Eu poderia ficar aqui dias, semanas, descrevendo cada sensação de enjôo, execração, repugnância, susto e temor que senti naqueles meses que se seguiram e que antecipavam minha formatura. Vomitava noites inteiras, emagreci mais de quinze quilos, o italianão começou a achar que eu andava dando e estava era com Aids. Um dia me chamou de lado, tossiu e me deu uns tiros de chumbo por meio de palavras diretas, dizendo que se eu fosse veado era para me mandar da casa dele que ele acertava as contas com a filha. Fiz tudo para que ele acreditasse no que me acontecia, contei mesmo que um sonho perverso me perseguia, que era vítima de um mal-entendido e estava sendo condenado pelo cosmo, mas essa história de cosmo ele não engolia e achava, cada vez mais, que se eu andava acreditando nestas bobagens era veado mesmo.

Do lado profissional a fissura também abriu feia. Seria impossível fazer residência daquele jeito. Eu estava mais doente do qualquer paciente que pudesse precisar do meu auxílio. Sucumbi. Não havia outra palavra que descrevesse o que me aconteceu. Eu, definitivamente, sucumbi aos chamados do morto e, formado, voltei à cidade natal.

Depois de uma sessão de sustos com a minha magreza e de um desfile que durou três dias, em que entendi que meia cidade fingia que ia visitar minha mãe para me ver em desdita, consegui dormir uma noite sem o pesadelo. Aquela procissão de olhos maus parecia ter me lavado do pecado, me perdoado do erro que eu não havia cometido, mas acreditava que sim.

Embora tivesse perdido a namorada com cheiro de flor e desejasse do mais profundo recôndito da minha alma me aconchegar com ela nas mantas grossas de de ovelha, posso declarar que a primeira noite que dormi sem o pesadelo foi a noite mais feliz da minha vida.

Era uma, eram duas, eram três. Três noites sem pesadelo. A casa gostosa, a cama no mesmo quarto de quando eu era moleque, os mesmos bancos na praça, o mesmo botequim, a sala com a mesa de centro de palito coberta pela mesma toalha de crochê e o conjunto estofado estampado de petúnias, lindas, róseas, tudo igual. E nunca um cenário me parecera tão novo, tão lindo, tão fantástico. Arroz, feijão, lingüiça de porco feita ali mesmo no vizinho, couve rasgada, torresmo e quitanda de amanteigados, biscoitinhos de nata, sequilhos. Eu era um outro homem e pensava em voltar para a minha china, no distante rio grande, aquele sul que me acolhera e de onde eu não queria ter partido. Comecei a fazer planos. Engordei uns cinco quilos em um mês de casa paterna e fiz a mala. Ia voltar no dia seguinte, a residência médica me esperava, a namorada também.

Todo mundo sabe o que aconteceu, então. O pesadelo. Aquele. Pior do que da primeira vez, com veias roxas se desmanchando, pedaços de pele caindo, tudo a que um pobre ser vivo tem direito a pagar de imposto de tristeza e maldição porque permaneceu vivo enquanto o amigo morria, paguei naquela noite. O pesadelo chegava a ter um cheiro horripilante. Desfiz a mala. Estava preso, irremediavelmente, era um prisioneiro do passado, do morto, do destino. Pronto.

Consegui revalidar meu exame de residência para o interior de Minas, pedi a gorda irmã do meu amigo em casamento, fui dormir com ela no quarto que antes era dele e ainda tinha até umas flâmulas de times de futebol que ele colecionava, pregadas na parede, a mãe não deixava limpar. Ali, ouvindo o ranger da cama patente, fiz dois meninos iguaizinhos ao tio para ressuscitar a alegria da família. Consegui, só que fui ficando cada vez mais triste. Terminei a residência, inventei centenas de plantões para ficar longe daquela casa, escrevi dezenas de cartas nunca enviadas para a namorada do sul. A cidade agora não ria às escondidas da minha desgraça, me cumprimentava como um senhor de respeito. Médico, pai de família, então não era aids que ele tinha quando chegou, era tristeza mesmo, coitado, tanto que caluniaram.
 
Meu pai não entendia nada, minha mãe entendia tudo. Através do olhar, me dizia, filho, você está renunciando à sua felicidade, que loucura está fazendo, eu respondia, também apenas com o olhar, que era preciso para que eu me curasse. Minha sogra mineira voltou a sorrir. Meu sogro sobreviveu a dois enfartes, bem assistido pelo médico da família, que, no caso, era este cretino que vos fala. E resolveu nos dar uma imensa casa de presente. Aceitei, para escapar da casa do morto, mudamos para . Minha mulher gorda, que nunca perdeu o sorriso resignado de quem previa o futuro, meus dois filhos que eram a cara do titio e eu.

Agora, depois de doar seis anos da minha vida, sinto que cumpri a missão, fiz minha parte do sacrifício, acertei as contas com a vida, com Deus, com o Diabo, com Buda, com Xangô, com os deuses gregos, romanos, com todos os grãos de areia da natureza, com o Cosmo, com quem quer que seja. Pronto. Chega.

Se eu gosto dos meninos? Não. Eles são a cara do tio dos meus pesadelos insólitos, da minha insônia, da minha desolação mórbida. Não são meus. São o pagamento frustrante e forçado de um pecado juvenil jamais perpetrado. Um preço alto.

Agora, eu estou aqui, sentado diante do senhor, para resolver este caso, contei minha história, meu sogro italiano que nunca foi e nunca deixou de ser, quero que me entenda.

Se aquela morte não tivesse acontecido daquele jeito eu não teria me casado com a gorda e nem estaria aqui, zonzo, pedindo para ficar. Por enquanto não vou poder casar com sua filha, mas com o tempo eu consigo arrumar a papelada e acertar a documentação para o casamento que eu sei que italianos tradicionais não gostam de bagunça. Imagine se eu ia querer me arriscar a apanhar destes seus quatro filhos fortões (embora tenham a cara cor de rosa), eu assim meio magro, queria ficar ao lado da namorada querida que o destino me roubou por tanto tempo.

A cidade não tem médico, eu trabalho mil horas por dia... Eu tenho 35 anos, ela tem 32, a filha que ela teve enquanto eu estava fora, linda, cor de rosa também, parece ser minha filha, um sentimento insólito e bendito. Eu adoro essa gaúcha cheia de vida, essa risada alta meio fora do tom, essa saúde exuberante de girassóis em flor. Se o senhor tiver um copo de vinho vigoroso, um catre de madeira cheirosa como a minha flor do sul e uma manta de grossa de ovelha e me der licença, eu fico.

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Hoje é diretora da revista UMA. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano).

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