segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Diferença e desprezo

* Por Daniel Santos


Dia desses, recebi a visita da gratidão, mas só depois do susto inicial entendi o quanto me queria aquilo que deixei viver, embora um intolerante quase me convencesse, então, a incorrer em mesquinharia.

Aconteceu meses atrás, quando conversava com um vizinho no muro ao fundo de nossas casas: enquanto ele maldizia a velhice e eu defendia que quase tudo podemos superar, avistamos uma lagarta.

Gorda, cabeleira ruiva, chifres de intimidar até o demo, tudo nela induzia à repulsa. Intuí, no entanto, que de seus planos e prazos só ela sabia. Ela e ninguém mais. Mas o vizinho instigava “mata, mata!”.

Pois, não matei. Ou quase matei. Mas sem coragem de interferir nos mistérios da Criação e certo de que a diferença não merece desprezo, deixei-a onde se banqueteava. E que o vizinho não a molestasse – frisei.

A lagarta meteu-se no casulo. Meses depois, ressurgiu já borboleta. Amarela! Estava na janela da cozinha, quando ela passou rente à minha testa num aceno agradecido. E logo escapuliu para viver sua nova idade.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




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