quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Big Brother sonoro


* Por Marcelo Sguassábia

- Um diário fonado.
- Como assim, um diário fonado?
- Você liga um desses gravadorzinhos digitais e vai gravando tudo o que se passa. Eu disse tudo. Mas não um diário como os outros, onde alguém narra o que acontece de mais importante. É a vida gravada mesmo, um “Show de Truman” em áudio. Quando a memória do gravador estiver cheia, descarrego no computador e começo a gravar de novo, indefinidamente. Dia após dia, ano após ano.
- Ah, sei. Você desperta e vai dizendo: “abri os olhos, são seis e trinta, coloquei os dois pés no chão, primeiro o direito, depois o esquerdo, calcei os chinelos”...
- Pára, eu tô falando sério. Não é descrever o que rola, é viver com o gravadorzinho ligado. Como um “Big Brother”, mas sem as imagens. Olha só, agora mesmo estou gravando nossa conversa, que vai ficar pra posteridade. Veja aqui o bichinho escondido no meu bolso.
- Que idéia maluca. Pra que isso?
- Hoje pode parecer absurdo, mas imagine o valor de um documento assim pras próximas gerações. A sociedade do futuro saberá como era a vida das pessoas no século 21. Eu digo a vida íntima, o cotidiano nu e cru, entende? Nossos bisnetos herdarão uma relíquia de incalculável valor histórico. Nunca ninguém fez isso antes. Imagine se você pudesse ter acesso ao registro da vida da sua bisavó, minuto a minuto. Não seria sensacional?
- Isso inclui cada instante vivido, sem intervalos?
- Claro. Se editar, perde a credibilidade.
- Sei, e quando a gente estiver na cama? Vai que alguém rouba a traquitana e devassa nossa intimidade, pensa bem... Outra coisa, e na hora de ir ao banheiro? Entram até, digamos assim, as manifestações orgânicas de caráter involuntário? O barulho da descarga? As escovações de dente?
- Tudo, ininterruptamente, até o último suspiro.
- Que mórbido.
- Gravaremos o primeiro choro do nosso filho, os gritos na montanha russa, os rojões nos jogos da Copa, pessoas reclamando da fila que não anda, o motorzinho no dentista, a fala dos pedintes nos semáforos... não vamos mais correr o risco de não lembrar das coisas. O inventário detalhado da existência estará sempre à mão. Basta um “rewind” pra reviver os melhores momentos.
- Bom, já que é pra registrar, por que não faz isso em vídeo?
- É que aí a gente vai querer ficar arrumadinho o tempo todo. Quando uma câmera é apontada pra você, acabou a espontaneidade. Fora que o áudio vai mexer mais com a imaginação de quem estiver ouvindo lá no futuro. É como as radionovelas, só que uma radionovela real, que dura décadas. Se Deus quiser, né.
- Ok, suponhamos que você viva mais 50 anos. Será meio século de áudio estocado. Se algum louco se meter a escutar isso, vai perder 50 anos da própria vida pra ouvir o que você gravou. É preciso muito amor à sua pessoa ou à pesquisa antropológica, não acha não?
- Mas também não é assim. As 8 horas diárias de sono não seriam gravadas, porque aí não acontece nada mesmo. Seriam 16,6 anos de gravação a menos.
- Ah bom, aí já dá pra encarar a empreitada. São só 33 anos na escuta! Ora, tenha paciência.
- Repare que interessante metalinguagem: estou gravando você falando da gravação que a gente está fazendo. Maluco, né?
- Então, mas o problema...

(Neste momento, aparentemente, houve pane no gravador. Não há registro da continuação da conversa).

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. Exatamente como começaram as gravações de viagens em videocassete. O terrível e insuportável era aguentar ver aquilo. Pobres amigos!

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