sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Na vizinhança dos teus 60 anos


* Por Urariano Mota

Dirás que me engano. Dirás que seria melhor eu escrever que completas hoje o vigor dos teus 59 anos. Mas tentarei adiante mostrar a razão de eu te ver na vizinhança do que serás. E sentiremos os dois, imagino, que o maior prêmio é o  futuro.  

Se eu tivesse dom dos poetas do repente, improvisaria versos que cantassem com rima e graça o bem do presente que cresce para os anos que terás. Mas como sou prosador, apenas pergunto mais curto que o nosso tempo na terra: os limites da idade são também limites da vida?  Penso que os limites da idade não podem ser fronteiras a que todos estamos condenados. Assim, penso e creio que os  limites dos anos se alargam pelas mudanças que podemos usar a nosso favor. Seria mais que uma compensação, mais que um consolo do tipo “se não consegues pular o frevo, dances uma valsa”. Não é isso. Trata-se de assimilar a transformação, como a forma organizada de um novo ser. Assim como os artistas fazem um estilo do que neles é falta.

Se eu pudesse compor um poema haicai,  escreveria três versos com metamorfose, pupa e crisálida. Como não posso, imagino um imago para os teus 60 anos que se avizinham, e por isso escrevo metamorfose,  casulo, pupa. Penso nas sucessivas crisálidas, quero dizer. Penso nas borboletas, enfim, que se abrem de um modo inverso para os teus próximos anos. Tu voas nas transformações saídas da pupa das tuas rugas. Enquanto  vincos se mostram, o que na matéria visível é casulo, asas amarelas se abrem do teu novo ser.  

Bem lembras. Na Crônica do amor que amadurece, quando anunciavas os 50 anos, eu te escrevi:

“O essencial é que as rugas, as gorduras, os ossos frágeis do objeto que se ama se revelam uma fortaleza. O amor que amadurece ama a pessoa exatamente nesse tempo de aparente decadência física, e por causa mesmo dessas formas. As fragilidades físicas se tornam uma qualidade, pois remetem a uma história comum.”

Lembras. Naquela ocasião, os casulos que fomos  cantavam  fenômenos gerais:

“Pois assim como a noite vinda depois do dia, e o dia que brilha depois da noite já não brilha como o de ontem, assim como a noite não pode ser da natureza do dia, e no seu escuro, nas suas estrelas, tem um encanto, que por ser diverso daquele do dia não deixa de ser um encanto, e assim como nas sucessões físicas, temporais, de toda a natureza, da flor que fenece e cai e se ergue em outra a partir dos grãos derramados...”

Desta vez, consigo, tento afinal um haicai para o que em ti é mais específico:

Nova idade

Metamorfose

Da pura pupa

Olho o relógio. São duas da manhã de 19 de junho e eu nem notei. Foi bom, o tempo correu e nem vimos as horas passadas.  É que o presente já se abre para o futuro.

Um bom dia para o amanhecer dos teus 60 anos, Francêsca.  


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Em setembro fiz 59 anos e bem que poderiam ser para mim tais escritos. A diferença é que estou só, e as rugas, na solidão, perdem o simbolismo do troféu e se transformam em peso. Por enquanto, ainda não morto.

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